A metamorfose de Liviê

Do latim metamorphōsis que deriva de um vocábulo grego, o termo metamorfose evidencia “transformação”. Sendo a transformação de um ser em outro, em seu sentido figurado a metamorfose pode ocorrer no caráter, no estado ou na aparência de uma pessoa.

A metamorfose da nossa personagem Liviê Cocco Rodrigues teve sua primeira fase há muito tempo atrás, porém o despertar em 2019 foi essencial para ser quem é hoje.

Nascida no município de Nova Palma no Rio Grande do Sul, aos 22 anos, Liviê compreende que parte da sua identificação é resultado de todas as suas mudanças em territorialidade. “Nasci no interior do Rio Grande do Sul, me mudei para o Mato Grosso, morei em Pinhal Grande e atualmente moro em Júlio de Castilhos, as mudanças e andanças sempre estiveram presentes na minha vida. Para eu falar de gênero e identificação penso de onde sou e qual é o lugar que me identifica e me aproximo como pessoa existente nesse mundo para me apresentar”.

A acadêmica do oitavo semestre do curso de Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) é artista  visual e educadora em formação. Assim como suas andanças por territórios e estados, ela percorre pelo teatro, maquiagem, fotografia e experimenta diversas linguagens para trabalhar como artista.
Talvez eu não seja nada disso”

Os questionamentos e a arte moldam boa parte de quem é Liviê, a sua virada de chave para se identificar como uma pessoa Trans Não-Binárie aconteceu no ano de 2019, em uma disciplina de pré projeto de TCC na faculdade. Naquele instante ela questionou-se sobre produções que havia feito e um professor sempre definia o seu trabalho, mas nunca a perguntava o que ela tinha feito. Neste momento foi onde ela percebeu que acolhia e aceitava coisas que não faziam mais sentido. “Eu fui tão fundo que cheguei na questão do gênero, em que ponto me disseram que eu era uma mulher e eu aceitei aquilo e vivi como aquilo? Em uma época da vida tudo está resolvido, aí passa um tempo e você chega num lugar e pensa que talvez você não seja nada disso a vida toda. Talvez eu seja outra coisa, mas o que seria? Se aquilo que eu conhecia de contrário ao feminino era o masculino e eu não me identificava com isso, será que existia um meio entre isso?”

Sair de uma cidade do interior e morar no centro que é Santa Maria fez com que Liviê tivesse contato com outras linguagens e manifestações artísticas. Há cinco anos como acadêmica, sua consciência foi atingida a motivar-se na transitoriedade. Ansiedade era o sentimento no final de 2019, a virada de ano para 2020 traria consigo o sonho do intercâmbio que tinha conseguido através da UFSM.

Mas quando a pandemia de 2020 se instaurou, Liviê se vê presa em um lugar que não imaginou mais estar.

Aceitação e reaprender

Voltar para a casa dos pais e estar longe de sua rede de apoio de amigos foi um grande baque, a confusão mais uma vez vira protagonista dessa história.

Por mais que tivesse achado o conforto na internet através do projeto EDUCATRANSFORMAque se coloca como uma ponte entre as pessoas transgênero e o mercado de trabalho de tecnologia e inovação, aquilo não é suficiente apenas olhando pela tela. “Eu estava em um processo de entender melhor a não-binariedade e me pego convivendo com meus pais que eu não tenho contato contínuo há mais de quatro anos. Ao chegar em Júlio passo por um constante processo de me reapresentar para as pessoas que me criaram  e estiveram sempre comigo. Falo isso num ponto muito visceral, pois estou me reapresentando pra pessoas que me nomearam”.

Para seus pais, Liviê ainda era a Lívia Cocco Rodrigues de olhos claros que andava de bicicleta no fundo do pátio de casa.

Com pais mais velhos, Liviê os via dispostos a escutar e se corrigirem. Sua preocupação era como introduzir o assunto em casa, sendo que para ela tudo era um pouco nebuloso. “Entendi que precisava muito do apoio de minha família, em isolamento aquelas eram as pessoas que eu tinha. Por mais que muitas vezes algumas coisas entravam em um ouvido e saiam pelo outro, no momento que começo a tornar algumas falas diárias vejo que tem essa pausa e espera”, contempla Liviê

A verdade é que o processo de transição neste momento não acontecia somente em Liviê, mas também com seus pais. Com tudo se engatinhando ela notou que ali tinha toda uma vida construída. “Eles me criaram, para eles aprenderem como me chamar para eu poder também atender é de passinho em passinho. Tiveram dias de muito choro, quando eu tentava falar eu não conseguia, sentia muita culpa de estar falando e confrontando o que foi construído a partir da visão que tinham de mim. Eu vi que o jeito como eles me chamavam antes era o jeito que tínhamos contato, aí quando eu falo não me chamo mais Lívia, vem aquela dúvida, será que esse contato vai continuar acontecendo? Será que agora vão deixar de falar comigo e vou me sentir mais sozinha do que já estou?“, relata Liviê.

Do silêncio a surpresa

Em um dos tantos dias do isolamento, Liviê sentiu que não poderia mais segurar com ela todo aquele peso. Ao ver sua mãe disse que precisava falar com ela, e falou tudo o que sentia sobre seu gênero e a mudança de nome. “Eu chorei muito, minha mãe também chorou, me abraçou e disse que não teria problema, eram minhas escolhas e ela respeitava isso”, relembra.

De acordo com Liviê, as respostas de seu pai sempre eram o silêncio. Certa vez foi questionada por ele por que não assinava o sobrenome Rodrigues em suas obras, e foi este o gatilho para ela entender toda sua relação de lugares com histórias e compreender por que não poderia assinar o seu sobrenome em suas coisas.

Em julho de 2021 Liviê viajou para a cidade de Pinhal Grande com seu pai, onde ele a leva ao cartório da cidade para dar início ao processo de retificação de nome de gênero. “Naquele momento as coisas começaram a acontecer, o meu pai marceneiro me entendia mesmo isso não fazendo parte do universo dele. Essa parte do processo foi muito importante. Ao chegar no cartório, poucas entradas de retificação de nome tinham sido feitas no Brasil, pelo menos através do pedido judicial como gênero não-binarie na certidão de nascimento. Eu achava que teria algum suporte, mas a secretária me disse que aquela era a primeira vez que eles realizavam este processo”.

Por ser a primeira vez que estavam fazendo este processo, os funcionários do cartório estavam dispostos a aprender, por sorte.

Para Liviê passar por toda questão judicial era mais uma vez alguém dizendo para ela sobre o que deveria ou não ser. “Lembro que eram escolhas muito especificas, tentaram contornar me apresentando outros gêneros, mas o que eu me identificava de fato, era o não-binário”, conta.

Para a nossa felicidade, no dia em que entrevistamos Liviê foi um dia de comemoração. “Hoje recebi uma ligação do cartório, pois tive que entrar com recurso e advogado e o pedido veio para o cartório de Júlio, fiquei muito negativa. Aí nestemês da visibilidade transque estou entendendo a importância disso, recebo a ligação do cartório dizendo que sou oficialmente Liviê Cocco Rodrigues, e que meu sexo é não binário e o judicial aprovou essa solicitação”, conta Liviê.

De acordo com o defensor público Thiago Oro Caum Gonçalves, de Frederico Westphalen, hoje já pode ocorrer a mudança de nome em cartório. “Já chegaram casos na defensoria para realizar a mudança, mas a pessoa queria acrescentar, e assim, deve ser feito por ordem jurídica”, explica.

Para ele, existe uma falha no sistema. “Quando o Conselho Nacional de Justiça determinou a resolução interna que esse procedimento seria feito em cartório, não foi estabilizado uma sistemática, todo mundo sabe que deve fazer porém não sabe como. Infelizmente as pessoas irão chegar nos cartórios e muitas vezes eles não terão as ferramentas necessárias”, contempla.

Segundo o defensor, o sistema da Defensoria Pública já utiliza o nome social do cidadão podendo cadastrá-lo. “No Rio Grande do Sul a lei já assegura que a pessoa tenha sua identidade social, o nosso jurídico tem participação de tudo, porém ainda hoje no Brasil a designação consta comoTranstorno de identificação Sexual, relata.

O transtorno da identidade sexual ou de gênero é uma questão de ordem médica e psicológica que ocorre quando um indivíduo de um determinado gênero biológico (homem ou mulher) se identifica mais com pessoas do sexo oposto.

Para o defensor isto é um grande problema. “Eu não posso tirar isso da discussão pois esse é o elemento para poder reconhecer, não está na lista do estado. A gente ainda não consegue nem adaptar que isso não é transtorno, mas é algo que o Estado tem que prever, o respeito a individualidade das pessoas”, finaliza Thiago.

Liviê não tinha ideia de como seria a pronúncia de seu nome, por várias vezes só tinha escrito. Ao estar em terapia com sua psicanalista, foi onde encontrou força para falar e depois de muito tempo ouvir como seu nome seria pronunciado e como isso seria levado ao mundo.

Agora o processo é de reaprender. “Infelizmente em alguns momentos o chamamento pelo meu nome não acontece, quando falam individualmente comigo tudo ocorre bem, mas em uma conversa todos juntos às vezes não acontece, mas sei que é um processo. A sociedade nos inviabiliza, as discussões ainda sobre não-binariedade são muito recentes”, finaliza Liviê.

Realizações e conquistas

A falta de materiais na pandemia foi um tipo de trava para a artista, porém Liviê experimentou o digital. “Em 2020 participei do projeto “Parada nas paredes”, onde ocorreram projeções em prédios de grandes capitais. O chamado era sobre montação Drag em massa, então editei um trabalho de 2019 e enviei, assim foi selecionado e projetado” relata.

Ainda, teve a oportunidade de expor seu trabalho fotográfico sobre seu corpo, gordo e trans, na Casa de Cultura Mario Quintana em Porto Alegre, o edital era para 90% dos trabalhos serem de pessoas trans. 

O sonho interrompido do intercâmbio se realizou e Liviê através do vínculo da universidade foi para o Uruguai estudar três meses, em uma área que não domina o idioma, mas realiza seu sonho.

Para a artista de 22 anos, a não-binariedade é sobre se encontrar como ser, você pode escolher características corporais, visuais, e anatômicas. Este é um guarda-chuva muito vasto com várias determinações que no seu caso, usa os três pronomes.

A fase da metamorfose agora é a de entender os processos pelo qual já passou, mas sabe que ainda precisa viver muito mais.

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Esta reportagem busca compreender o processo das fontes em assumirem suas identidades e sexualidades perante seus familiares, e a forma em como este preconceito foi enfrentado.
Realizada pelos alunos Bárbara Linhares, Bruna Lopes, Lavínia Machado e Marcos Pellegatti, do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Maria em Frederico Westphalen, a matéria faz parte de uma das avaliações da Disciplina de Laboratório de Reportagem Convergente 2021/2.

Edição e coordenação:
Bárbara Linhares
Bruna Lopes
Lavínia Machado
Marcos Pellegatti

Entrevistas:
Bárbara Linhares
Bruna Lopes
Lavínia Machado

Escrita, edição e revisão de textos:
Bárbara Linhares
Lavínia Machado

Redes Sociais:
Bruna Lopes

Infografia:
Marcos Pellegatti

Design:
Marcos Pellegatti

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