Eventos do século em décadas: entenda a nova frequência dos desastres climáticos no RS

O planeta está mudando — e de forma cada vez mais rápida e intensa. O aumento da temperatura global, provocado pela ação humana, está tornando os eventos climáticos extremos mais frequentes e devastadores. Um exemplo foram as chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul em maio de 2024, provocando a maior tragédia climática da história do estado. Segundo o climatologista Francisco Eliseu Aquino, fenômenos que antes ocorriam a cada século podem se repetir agora em intervalos de 30 a 40 anos.

“Como o planeta seguirá aquecendo e os fenômenos meteorológicos vão ter que responder, o tempo de retorno de um evento meteorológico extremo como a inundação de 1923, 2023 ou de 2024, elas passam agora uma escala menor de tempo”, explica Aquino.

 

 

O Rio Grande do Sul foi atingido por uma enchente histórica em maio de 2024, que provocou danos em quase todos os municípios, devastou cidades em sua maioria na Região Metropolitana e Vale do Taquari, retirou milhares de casa e deixou 184 mortos, além de 25 desaparecidos. De todo o país, voluntários e doadores se mobilizaram para prestar ajuda aos atingidos.

De acordo com o professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e chefe da divisão de clima do Centro Polar e Climático da universidade, a sociedade antecipou os eventos extremos do Rio Grande do Sul, no entendimento dos climatologistas, em uma década e meia, pelo menos.

O pesquisador relaciona os desastres recentes a um novo padrão climático alimentado por um planeta mais quente, oceanos aquecidos e circulação atmosférica alterada.

 

“Quanto mais o planeta fica quente, mais as tempestades se desenvolvem”, simplifica. “O Rio Grande do Sul sozinho é responsável por esse último um ano e meio, por mais de um terço dos piores eventos extremos de toda a América Latina”, comenta o professor.

 

Como o Rio Grande do Sul é um estado com as quatro estações do ano definidas, todos os fenômenos climáticos e meteorológicos – que sempre existiram no estado – vão ser intensificados, segundo o pesquisador.

Rios voadores e tempestades intensas

 

Aquino explica que o Rio Grande do Sul está geograficamente exposto a esses efeitos por estar entre duas potências climáticas: o calor dos trópicos, com umidade vinda da Amazônia, e o frio intenso da Antártica.

De acordo com o pesquisador, a formação das tempestades que atingiram o Estado tem origem em um corredor de umidade conhecido como “rio voador”, uma corrente atmosférica que se desloca a cerca de 1,5 mil metros de altitude transportando vapor d’água da Amazônia em direção ao Sul.

Quando essa umidade encontra frentes frias vindas da Antártica — que detém 90% do gelo do planeta e é a maior fonte de ar frio do mundo — formam-se nuvens extremamente carregadas, capazes de gerar chuvas intensas por várias horas seguidas.

 

Segundo ele, o ambiente atmosférico que gerou os três eventos de 2023 e 2024 foi praticamente idêntico. A diferença está na intensidade, que aumentou com o tempo, tornando a inundação de maio de 2024 a pior da história do estado.

Inundações

 

O climatologista distingue os conceitos técnicos de enchente e inundação. A primeira, mais comum, é um processo gradual: o rio sai do leito e ocupa áreas naturalmente alagáveis. Já a segunda – inundação – é abrupta: o volume de água excede qualquer previsão e ocupa tudo em questão de horas. Basicamente, são eventos de altíssimo impacto e pouquíssimo tempo de resposta.

 

“Nós tivemos inundação [em maio]. Ela é mais brusca e é por isso que chamou a atenção da comunidade, tanto no Brasil quanto no exterior, de especialistas. Inundações desse tamanho, eventos dessa magnitude, são semelhantes ao que ocorreu na Espanha, por exemplo”, relembra o estudioso.

 

Para Aquino, essa rapidez exige um novo nível de preparação da sociedade: sistemas de alerta antecipado, planos de evacuação, reavaliação das áreas habitadas e ações preventivas.

 

“A gente não freia uma inundação, não tem como. Ela vai passar e vai levar tudo que ela encontrar pela frente”, alerta.

O papel da Antártica

 

O cientista esteve 19 vezes na Antártica. Na mais recente expedição, entre o fim de 2024 e o início de 2025, deu a volta no continente gelado a bordo de um navio quebra-gelo. Durante 70 dias, enfrentou ciclones extratropicais, coletou amostras de neve e documentou os efeitos do aquecimento global no continente mais remoto da Terra.

 

“O oceano no seu entorno está mais quente, as tempestades estão mais intensas e o derretimento da geleira na periferia da Antártica também dá sinais alarmantes, crescentes de derretimento”, expõe.

 

 

Aquino observa um detalhe: 90% do gelo do planeta Terra se encontra próximo do Rio Grande Sul e está na Antártica, que é a a maior formadora de massas de ar frio do planeta. Então, “enquanto o planeta aquece e a Antártica tende a arrefecer o planeta, o encontro dessas massas extremamente quentes com as mais frias possíveis ocorre justamente no nosso estado ou ao largo do nosso estado”, explica.

Um fato curioso e uma grande coincidência da viagem do professor é que, durante a expedição, Aquino e sua equipe identificaram o mesmo corredor de umidade cruzando o Atlântico Sul e provocando precipitação intensa de neve no navio. Ou seja, ao mesmo tempo, os colegas no Brasil registravam o início das chuvas de maio no Rio Grande do Sul.

“Eu coletei a amostra de água da chuva em Porto Alegre, em Pelotas, e no navio, ao mesmo tempo, mostrando que o rio voador está exuberante e ele vai lá na Antártica”, comenta.

 

Impactos em todos os setores

 

O cenário futuro, segundo Aquino, exigirá mudanças profundas em todos os setores da sociedade, da agricultura à infraestrutura urbana. Ele destaca que o Rio Grande do Sul já é um estado com prejuízo econômico por desastres climáticos.

 

“Sempre costumo alertar que toda a sociedade que está sofrendo com a mudança do clima, paga tudo mais caro, seja seguro, seja infraestrutura, seja os prejuízos da infraestrutura que já existia e que a gente perde ano após ano com os desastres do Rio Grande do Sul”, diz.

Ele defende investimentos urgentes em educação ambiental, ciência e tecnologia, replanejamento urbano e maior integração entre municípios e órgãos de defesa civil.

Além disso, propõe a criação de cinturões verdes nas cidades, reflorestamento de margens de rios e encostas e proibição de urbanização em áreas de alto risco.

“A estratégia pública, a sociedade com o seu tomador de decisão vai ter que entender que a mudança do clima é uma realidade, ela tem um impacto direto no nosso dia a dia. Nesse caso, nós estamos falando de eventos extremos com inundação”, pontua.

A ideia de Aquino não é mover todas as pessoas, mas replanejar infraestruturas.

“Quando a gente planeja posto de saúde, escola, hospital, etc., temos que pensar na localização estratégica em áreas mais seguras, para eles serem ambientes seguros no momento de maior necessidade”, observa.

 

Causa humana

 

A principal causa das mudanças climáticas, reforça Aquino, é humana. A queima de combustíveis fósseis, o desmatamento e a urbanização mal planejada colocam na atmosfera gases de efeito estufa aumentam a temperatura média do planeta.

 

 

“Todas as estações do ano ou o comportamento da chuva, da temperatura, atualmente são diferentes dos nossos pais, dos nossos avós e dos nossos bisavós”, diz.

 

Aquino observa que a cada 30 anos o clima foi mudando no Rio Grande do Sul e parâmetros como temperatura, intensidade das tempestades, os invernos seriam mais mornos, todos eles mudaram.

Na visão do pesquisador, os gaúchos precisarão reaprender a viver em seu território.

“A maior parte das pessoas depende da qualidade de vida e a resiliência das cidades depende da natureza, assim como quem vive no meio rural. O meio rural também anda degradado e a nossa forma de relacionar planejamento, diversas áreas, mais a questão ambiental, precisa ser revisada”, pontua.

Fonte: g1 RS

Foto: Sofia Kich