Se durante o período de isolamento da pandemia, os dispositivos eletrônicos foram grandes aliados para garantir acesso de crianças e adolescentes ao ensino remoto, hoje, de volta às salas de aula, o uso indiscriminado de celulares se torna um dificultador do processo de aprendizagem.
Pesquisas apontam que o uso de telefones celulares durante as aulas tira a concentração dos estudantes e prejudica o processo de aprendizagem. A presença descontrolada dos aparelhos se torna um desafio para professores e direções escolares. O debate sobre a restrição ao uso de dispositivos eletrônicos em salas de aula passa pelas escolas, pela academia e pelo ambiente político.
Entre especialistas, há quem defenda a proibição total e quem, levando em conta o uso pedagógico, advogue por restrições severas, mas não totais. Mas um ponto é consenso: é preciso definir regras e protocolos para os celulares no ambiente de ensino. Além do estímulo à distração, outros usos nocivos da tecnologia, como o cyberbullying, também preocupam.
No Brasil, seis em cada dez escolas de ensino fundamental e médio adotam algum tipo de regramento, de acordo com a pesquisa TIC Educação, do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). O levantamento foi realizado com três mil gestores de unidades de ensino urbanas e rurais.
📱Como funciona nas escolas públicas?
Nas escolas públicas gaúchas, não há uma proibição do uso, mas restrição de algumas funcionalidades da internet a partir do acesso do aluno pelo aplicativo Escola RS, informa a Secretaria Estadual de Educação.
De acordo com a Seduc, “ferramentas como Chromebooks e celulares para acesso das plataformas de leitura e do Google Classroom fazem parte da estrutura de apoio pedagógico” e o uso ocorre sempre com o acompanhamento e a orientação dos professores.
📱Como funciona nas escolas privadas?
No ensino privado, algumas escolas já adotam regras e outras ainda discutem como fazê-lo. A necessidade de as escolas adotarem protocolos em relação ao uso de celular foi incluída na Convenção Coletiva de Trabalho 2024/25, firmada entre os sindicatos que representam professores e escolas do ensino privado – Sinpro e Sinepe.
📑O que diz a legislação do RS?
No Rio Grande do Sul, desde 2008, a legislação estadual proíbe o uso de “aparelhos de telefonia celular dentro das salas de aula, nos estabelecimentos de ensino”. O texto prevê que os celulares devem “ser mantidos desligados, enquanto as aulas estiverem sendo ministradas”.
O tema está em discussão na Assembleia Legislativa. Tramita desde fevereiro um projeto de lei de autoria do deputado Gustavo Victorino (Republicanos), que atualiza a lei vigente. O texto propõe a proibição do ingresso e do uso de telefone celular por alunos no interior das salas de aula das escolas da rede de ensino público estadual, exceto aqueles destinados ao acompanhamento de atividades pedagógicas previamente autorizadas pela direção.
📱Como funciona o uso de celular em escolas de outros estados?
Além das escolas, o debate chegou também à esfera política brasileira. No Rio de Janeiro, por exemplo, os celulares estão vetados das salas de aula por decreto desde o começo deste ano.
Em outros estados, há propostas de proibição do uso de dispositivos eletrônicos nas escolas em discussão em assembleias legislativas. No Rio de Janeiro, a restrição já existe, por meio de decreto.
O debate obviamente não se restringe ao Brasil. França, Espanha, Itália, Finlândia, Holanda, México e Estados Unidos estão entre os países que adotam algum tipo de protocolo restritivo.
Um a cada quatro países têm leis que proíbem os celulares em sala de aula, de acordo com o “Relatório Global de Monitoramento da Educação”, divulgado pela Unesco, Organização da ONU para Educação, em 2023.
O documento destaca preocupações com uso excessivo de telefones e o impacto negativo no aprendizado. Recomenda ainda “visão centrada no ser humano” ao utilizar tecnologia na educação.
🔐Telefones dentro da gaveta
Quando toca o sinal para o início da aula ou para o retorno do recreio, celulares vão para uma gaveta, que é chaveada pelo professor. Essa foi a forma encontrada por uma escola privada da Zona Sul de Porto Alegre para contornar o problema que gerava reclamações de docentes, pais e até mesmo estudantes.
Desde o começo de 2024, o uso dos aparelhos em sala de aula passou a ser regrado. Os celulares só deixam a gaveta durante as aulas para atividades pedagógicas específicas, mediante autorização do professor.
Entre os efeitos da mudança, Fernando Degrandis, vice-diretor educacional do Colégio Marista Ipanema, destaca que os estudantes estão mais atentos durante as aulas e interagindo mais entre si.
“Tínhamos uma expectativa de que os estudantes seriam mais resistentes, principalmente os do Ensino Médio. Eles questionaram, mas aderiram. E o retorno que eles dão é de que redescobriram algumas coisas, por exemplo, que é legal conversar com um colega ou fazer um exercício no caderno. Eles estão redescobrindo a relação com coisas que talvez para gerações anteriores era mais comum descobrir.”
A aluna do terceiro ano do ensino médio Maria Eduarda Guedes, conta que, até o ano passado, a sala de aula era tomada por “um silêncio absoluto”, cada aluno com seu telefone.
“Estando o tempo todo no celular, era mais difícil de pegar os conteúdos. Agora, por mais que tenha mais conversa, é conversa sobre a matéria. E tem uma interação maior, não só entre a gente, mas com os professores”, afirma a estudante de 17 anos.
“Eu me ‘obrigo’ a prestar atenção na aula já que não tenho o celular. E voltei a usar caderno para copiar o conteúdo, porque antes eu fazia foto do quadro. Quase ninguém usava caderno”, complementa a colega Alice da Silva, também de 17.
📱Escolas devem formar “cidadãos digitais”, defende especialista
A professora Alexandra Lonardi, da Faculdade de Educação da UFRGS, acredita que os telefones podem servir como ferramentas pedagógicas, desde que usados com restrições. “Pode ser usado, por exemplo, para pesquisas em tempo real ou algum aplicativo educacional específico. Hoje se tem aplicativos sensacionais em todas áreas do conhecimento.”
Alexandra ressalta, no entanto, que o uso descontrolado causa prejuízos não somente na esfera educacional, como também em aspectos sociais.
“Não podemos ignorar que o aparelho é programado para nos seduzir, para nos viciar, para a gente não descolar dele. Temos crianças com 6, 7 anos com smartphone. Que maturidade e consciência tem essa criança? Quanto mais jovem, mais fácil criar uma dependência, mas todos em algum nível criam.”
Para além da proibição ou não da presença dos aparelhos nos espaços de aula, a especialista destaca que o momento é propício para pensarmos a formação de cidadãos digitais.
“Não somos educados para viver esse mundo digital, que é algo muito recente. Se nos dirigimos para as crianças que estão no espaço escolar hoje, os pais não foram educados digitalmente e também não têm ideia dos impactos negativos, do prejuízo à aprendizagem e até mesmo à saúde mental”, afirma.
Alexandra ressalta que não se pode ignorar a existência do mundo virtual, que tem influência cada vez mais forte e evidente nas nossas vidas. A educadora acredita que a educação digital tem que estar em pauta nas escolas e defende a adoção de políticas de formação permanente dos docentes, para que consigam auxiliar os alunos na formação de consciência sobre o comportamento no ambiente digital.
Proibição e discussões
- Rio de Janeiro: Nas escolas da rede municipal do Rio de Janeiro, o uso de aparelhos celulares é proibido desde março deste ano, por decreto do prefeito Eduardo Paes (PSD). Os telefones devem permanecer desligados ou no silencioso e dentro da mochila do estudante. A proibição inclui intervalos e o recreio. A decisão foi tomada após consulta pública, na qual 83% dos entrevistados foram favoráveis à medida.
O decreto prevê exceções para alunos com deficiência, mediante autorização do professor ou antes da primeira e depois da última aulas, desde que fora da sala. Uma peculiaridade do Rio de Janeiro é a previsão de uma exceção em caso de ocorrência grave que afete a mobilidade ou a segurança da população - São Paulo: O assunto está em discussão também em outros estados brasileiros. No estado de São Paulo, o projeto em discussão proíbe o uso dos aparelhos durante “todo o horário escolar”, o que inclui intervalos entre aulas, período de recreio e eventuais atividades extracurriculares. O texto prevê a criação de “canais acessíveis para a comunicação entre pais, responsáveis e a instituição de ensino”. De acordo com o texto, as escolas deverão ter um espaço para armazenar os dispositivos.
- Bahia: No estado baiano, a proposta de proibição abrange ainda outros dispositivos eletrônicos dentro ou fora de sala de aula. O texto propõe que os aparelhos permaneçam desligados dentro das mochilas. Pelo texto, seria permitido o uso quando liberado pelo professor, para fins pedagógicos, ou no caso de alunos com deficiência ou com problemas de saúde, que precisam dos dispositivos.
Fonte: Correio do Povo