
Você precisa dar conta de tudo?
Por Maria Eduarda Cardomingo, estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria, Campus Frederico Westphalen
Paul Kuczynski, desenhista polonês, critica constantemente em suas obras uma sociedade falida e moralmente distorcida. De maneira análoga às intenções artísticas do ilustrador, a romantização do trabalho excessivo, na nova era digital, mostra uma desmoralização social quanto a um estilo de vida ideal, já que, desde os primórdios da construção social do labor o seu conceito tem se modificado de acordo com as demandas da atualidade.
É inegável que o desenvolvimento tecnológico, em conjuntura com a pandemia do COVID-19, trouxe à tona a possibilidade (e necessidade) do ofício em home office, que resultou em uma maior jornada de trabalho, já que os instrumentos para tal atividade estavam sempre em contato com o trabalhador. De acordo com uma pesquisa conduzida pela Universidade do Sul da Califórnia, o aumento dessa jornada foi de 1,5 hora. Em paralelo a isso, o aumento do uso de redes sociais implica numa onda de compartilhamentos de rotina. Seja através de plataforma de vídeo e foto, ou por postagens escritas, mostrar ao outro o seu dia a dia passou a ser uma maneira de provar o seu valor social. Além da criação ilusória do ser e do viver perfeito, padrão que prejudica seriamente essa ação.
Tem se tornado comum o pensamento de que quanto mais coisas se faz em um dia, maior a capacidade daquela pessoa de ser feliz, e maior ainda a chance de sucesso profissional. Criou-se uma necessidade de dar conta de tudo. As agendas sempre cheias, o acordar cada vez mais cedo, o pouco tempo para o lazer, o fazer constante de atividades que agregam valor ao trabalho, tudo isso gera uma imagem de positividade e possibilidade que, apesar de não se encaixar na realidade de todos, se torna objetivo de vida. De acordo com o blog “Psicologia sem fronteiras”, para a psicóloga Maristela Vallim Botari, a romantização do trabalho se conceitua no ato de atribuir ao seu ofício uma energia emocional excessiva e desproporcional ao que se é necessário. A exaustão mental é uma das causas principais de diversos problemas psicológicos, como a ansiedade e a síndrome de Burnout, essa última sendo descrita em 1974, pelo médico americano Freudenberger, como um distúrbio psíquico caracterizado pelo estado de tensão emocional e estresse provocados por condições de trabalho desgastantes.
Já o transtorno de ansiedade generalizada (TAG), para o doutor Drauzio Varella, é um distúrbio caracterizado pela preocupação excessiva ou expectativa apreensiva, de difícil controle e que permanece por, no mínimo, seis meses. Segundo a Organização Mundial de Saúde, a pandemia do COVID-19 causou o prevalecimento da ansiedade em até 25%, o que em conjunto com o home-office e toda problemática trazida com ele, gera uma preocupação global sobre saúde mental.
Mas é importante ressaltar que antes da pandemia e o home-office já existia uma preocupação pública em relação ao trabalho. Quando se pensa no conceito do Neoliberalismo, uma doutrina socioeconômica caracterizada pela retomada dos ideais clássicos do liberalismo e a interferência mínima do Estado na economia, e a sua correlação com o trabalho, é possível compreender as más condições trabalhistas e o avanço da desigualdade social. Tendo em vista que um dos objetivos principais do neoliberalismo é o combate ao Estado de Bem Estar Social, ele acaba por enfraquecer as leis trabalhistas e as organizações sindicais, prejudicando a classe operária. Assim, o pensamento popular de que “quanto mais trabalhar, melhor estará na vida” leva a um trabalhador exaurido e se torna, também, um tipo de romantização.
O labor constante até o esgotamento gera no ser humano o sentimento de culpa quando se tira um tempo para o descanso. Immanuel Kant dizia que “cada coisa tem seu valor, o ser humano, porém tem dignidade.”, esse pensamento, quando atrelado ao assunto aqui tratado, mostra a periculosidade da romantização do trabalho em excesso, nos levando a refletir sobre o valor da dignidade humana nos dias atuais.
