A polícia aperta cada vez mais o cerco aos sorteios realizados ou divulgados por influenciadores na internet. Além dos crimes de contravenção penal e lavagem de dinheiro, já foi possível comprovar a manipulação de sorteios. Em reportagem exibida pelo Fantástico no domingo (25), a RBS TV identificou uma dessas plataformas e conseguiu fazer com que o repórter fosse ao mesmo tempo organizador e também contemplado por um desses sorteios, simulando a rifa de um Porsche (entenda abaixo).
No dia 6 de agosto, a operação policial contra dois influenciadores de Canoas, na Grande Porto Alegre, chamou a atenção para os milhões de reais que esses sorteios movimentam. Ao realizar operações em endereços ligados a Pâmela Pavão e Gladison Pieri, os agentes liderados pela delegada Luciane Bertoletti apreenderam 49 veículos de luxo – incluindo um Corvette avaliado em R$ 1,5 milhão além de duas moto aquáticas, artigos de luxo e R$ 600 mil em espécie.
A defesa do casal nega a prática de crimes e afirma que os clientes são “meros divulgadores” dos sorteios e que não são os responsáveis pela entrega dos bens, o que “deveria ser demonstrado no inquérito” (leia a íntegra do posicionamento abaixo).
Na simulação, o repórter Giovani Grizotti, do Grupo de Investigação (GDI) da RBS abriu uma rifa na condição de organizador. Foi preciso preencher um rápido cadastro, com nome, telefone e e-mail, e não foi necessário colocar o CPF. Depois, é informado o prêmio a ser ofertado – no caso, o carro de luxo –, a quantidade de números a serem adquiridos pelos apostadores e o critério pra definir o vencedor, desta vez, a Loteria Federal.
No entanto, um detalhe: o site permite não informar a data do sorteio. Então, organizadores de rifas mal intencionados podem considerar a data que for mais conveniente, e até mesmo fixá-la de forma retroativa.
Foi o que fez a reportagem no dia 9 de agosto: depois de ser paga uma taxa de R$ 47,00 ao site, a rifa foi publicada, sem a data do sorteio. O repórter, então, escolheu a Loteria Federal do dia 7 de agosto. Venceria a rifa quem acertasse os quatro últimos algarismos do primeiro prêmio: 4984.
Na condição de cliente da rifa, o repórter, então, adquiriu esse número. Em seguida, na condição de administrador do sorteio, editou as configurações e escolheu a Loteria Federal do dia 7 de agosto como data para definir o contemplado.
O último passo foi publicar no site, de forma manual, a “cota” vencedora: 4984. Basta um último comando, para salvar as informações, para encerrar o sorteio e anunciar ao público o vencedor: o repórter Giovani Grizotti.
Toda essa operação, da criação da rifa à escolha do vencedor, durou menos de 15 minutos.
O promotor de Justiça Flávio Duarte investiga esse tipo de manipulação.
“A segurança desses sites é muito frágil. Ele propicia uma série de fraudes em relação às rifas. O organizador consegue, por exemplo, realizar uma rifa sem ter uma data estipulada para o sorteio. Então, com isso, ele consegue determinar se vai ter um vencedor ou não”, alerta o promotor.
Casal de influenciadores suspeito de golpe da rifa virtual
Na operação do início de agosto, as buscas incluíram a residência do casal, em Canoas (RS), e um apartamento no edifício Yatcht House, em Balneário Camboriú (SC), o mais alto do Brasil. A polícia civil diz que parte desse patrimônio foi adquirido com o lucro das rifas promovidas pela internet, em que cada número era vendido por valores irrisórios, como R$ 0,12.
Gladison chegou a ser preso por manter uma arma ilegal em casa, mas foi solto após pagar fiança de R$ 60 mil. Depois da operação, o casal voltou a anunciar rifas na Internet, inclusive de um carro de luxo apreendido pela polícia. E teve prisão preventiva decretada.
No dia 9 de agosto, o influenciador foi preso. Mas a prisão preventiva foi revogada no dia 13, com parecer favorável do promotor de Justiça Tiago Moreira, que acatou os argumentos da defesa. Contudo, foram aplicadas medidas restritivas, como recolhimento dos passaportes, uso de tornozeleira eletrônica e proibição de sair de casa à noite.
A polícia ainda investiga se os bens prometidos pelo casal durante os sorteios, como dinheiro em espécie e carros de luxo, eram de fato entregues.
“Há uma suspeita em torno desses sorteios porque os ganhadores, alguns deles, têm vínculos pessoais com os investigados. Eles receberam, inclusive, valores nos dias dos sorteios. Valores em suas contas, além do bem sorteado. Então, isso chamou a atenção da investigação”, afirma o delegado Cristiano de Castro Reschke.
Também será objeto de apuração a suposta estratégia adotada por Pâmela e Gladson para, hipoteticamente, legalizar os sorteios, até então, irregulares: firmar parceria com uma empresa de títulos de capitalização de Porto Alegre, a ViaCap, pela qual um projeto assistencial seria beneficiado com parte dos lucros. A empresa, que não é investigada, anunciou a suspensão dos contratos até o “esclarecimento dos fatos” (veja a nota abaixo).
“Laranjas” em sorteios
Outra apuração, também revelada no Fantástico, detalhou um esquema que manipulava os sorteios usando laranjas, indivíduos que ocultam identidades e/ou bens, e que tinha parceria com a mesma empresa gaúcha de títulos de capitação. Segundo as apurações, a empresa não sabia das fraudes e não possui qualquer envolvimento no esquema.
O inquérito conduzido pela Polícia Civil de Anápolis (GO) aponta que os vencedores recebiam pequenas quantias para figurar como contemplados e eram “comunicados” de que foram sorteados em chamadas de vídeo, durante transmissões ao vivo pelas redes sociais. Entre os laranjas, está uma pequena comerciante gaúcha.
“Eram pessoas simples, de baixa escolaridade, que tinham o sonho de ganhar um grande prêmio e mudar de vida. E elas aceitavam, muitas das vezes, a troco de um valor irrisório, R$ 800, R$ 1.000, se apresentar aqui no dia do sorteio, portanto, numa live, se apresentar para todo o Brasil, por intermédio do canal do YouTube dessas empresas investigadas, como sendo um ganhado”, diz o delegado Luiz Carlos Cruz.
A reportagem localizou uma a dona de uma pequena ferragem em Camaquã (RS), supostamente premiada com R$ 300 mil.
“Tudo o que tem alí é o que eles mandam…que tem que fazer um vídeo…que a pessoa tem que falar”, declarou a mulher.
Ela não quis dar mais detalhes do acerto com a empresa de sorteios. O inquérito mostrou que até supostas auditoras, que “autorizavam” o sorteio das bolas, eram na verdade meras funcionárias da empresa organizadora, sem qualquer conhecimento em auditorias.
Nota da defesa do casal:
“Pamela e Gladison não cometerem qualquer irregularidade. Eles são divulgadores de sorteios realizados por empresas cadastradas, regularizadas e devidamente fiscalizadas pela Susepe e Ministério Fazenda. As acusações apresentadas até aqui são fruto de equívocos e desconhecimento técnico de parte das atividades comerciais na internet. Todas essas questões serão devidamente esclarecidos no curso da investigação. André Callegari e Marília Fontenele, advogados de Pâmela e Gladson.”
Nota da ViaCap:
“Esclarecimento à imprensa A Via Capitalização S/A, empresa de emissão de títulos de capitalização, esclarece que os produtos “Pieri Prêmios” e “PPS Prêmios” estiveram em seus sorteios legalizados em dois períodos: de 04/10/2023 a 16/11/2023 e, mais recentemente, de 1º/06/2024 a 14/08/2024, quando houve a notificação de suspensão de ambos os contratos até o esclarecimento dos fatos. Fora desses períodos, não há qualquer vinculação ou responsabilidade da Viacap com promoção comercial ou campanhas dos influenciadores. A Viacap, com trajetória de 42 anos e pioneira em diversos produtos no mercado de capitalização, reafirma seu comprometimento com a legalização, a transparência e a credibilidade na emissão de títulos de capitalização. A empresa conta com conhecidas ferramentas e processos que garantem a integralidade dos sorteios realizados, todos auditados por auditoria internacional externa e independente e regulados pela Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda.”