O que é o eletrochoque, defendido pelo novo coordenador de Saúde Mental do SUS?

Nesta semana, o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, nomeou o psiquiatra Rafael Bernardon Ribeiro, para o cargo de coordenador-geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas, da Secretaria de Atenção Primária à Saúde. A decisão foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) na última quinta-feira, 18. 

Chamou a atenção da comunidade psiquiátrica, o fato de o médico ser ferrenho defensor da eletroconvulsoterapia , conhecida popularmente como eletrochoque.

Em uma entrevista de 2013, ao Canal da Psiquiatria, Ribeiro afirmou que “a eletroconvulsoterapia (ECT) é um tratamento utilizado na medicina desde 1938, ele persiste justamente por ser muito bom” e recomendou o tratamento para “casos mais graves que não tem nenhuma resposta a nenhum medicamento em geral em mais de três, quatro, cinco tentativas, combinadas ou não”.

Quatro anos depois, o médico voltou a defender a ECT em uma live da Associação Brasileira de Psiquiatria TV, afirmando que o procedimento é “muito seguro”.

Mas o que é a eletroconvulsoterapia e como é utilizada nos dias atuais? Segundo a psiquiatra Ana Paula Guljor, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a ECT é um tratamento psiquiátrico no qual correntes elétricas provocam uma despolarização cerebral induzindo a uma convulsão.

A partir disto, pretende-se atingir a reversão de determinados processos psíquicos extremos, como a forma catatônica da esquizofrenia e surtos psicóticos.

O procedimento é regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) desde 2002, desde que realizado em âmbito cirúrgico e com anestesia geral. Ainda assim, não há unanimidade na comunidade médica em relação à sua efetividade e riscos.

“A eletroconvulsoterapia é preconizada enquanto um tratamento extremo mas, mesmo assim, a gente não consegue garantir que seja realizado com os cuidados de protocolo e, ao mesmo tempo, a médio e longo prazo, os efeitos são bastante questionáveis”, afirma Guljor.

Como referência na literatura médica, a psiquiatra cita o artigo Deveríamos parar de utilizar a eletroconvulsoterapia?, do professor de Psicologia Clínica da University of East London, do Reino Unido, John Read. Nele, o docente aponta que os estudos, mesmo os mais atuais, mostram que o tratamento não tem respaldo científico.

“Ele aponta que a quantidade de estudos que comparam o ECT com o placebo no tratamento da depressão, que é uma dessas indicações, ainda são controversas. Existem 10 estudos até 2019 e nem todos conseguem afirmar de uma forma irrefutável que não há danos posteriores e que tem uma efetividade maior do que o uso do placebo a médio e longo prazo”, afirma Guljor.

Ao contrário, uma pesquisa de 2017 do professor Dusan Kolar, do Departamento de Psiquiatria da Queen’s University, do Canadá, mostrou que há probabilidade de comprometimento cognitivo e perda de memória permanentes.

No estudo, Kolar afirma que “a ECT é um dos tratamentos mais controversos da medicina, particularmente por causa do mecanismo de ação ainda desconhecido e da incerteza sobre os efeitos colaterais cognitivos”.

A utilização da eletroconvulsoterapia está ligada a um histórico de tortura dentro de hospitais psiquiátricos, os conhecidos manicômios. De acordo com Guljor, entre as décadas de 1970 e 1980, em muitos espaços a ECT era utilizada de forma punitiva, como instrumento de amedrontamento e controle.

Uma das primeiras medidas do governo de Jair Bolsonaro, em fevereiro de 2019, foi emitir uma nota técnica, por meio do Ministério da Saúde, a fim de reorientar as diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental.

Entre as alterações, constavam a compra de aparelhos de ECT para o Sistema Único de Saúde (SUS), internação de crianças em hospitais psiquiátricos e abstinência para o tratamento de pessoas dependentes de álcool e outras drogas.

O movimento iniciado no governo de Michel Temer e intensificado pelo governo Bolsonaro anda na contramão da Reforma Psiquiátrica no Brasil e a luta antimanicomial, acentuada a partir dos anos 2000.

Em abril de 2001, o governo de Fernando Henrique Cardoso promulgou a Lei n. 10.216, dando os primeiros passos para uma lei nacional para a reforma. “A partir de avaliação de hospitais psiquiátricos que teve início na década de 2000, esses lugares de aplicação [manicômios] começaram a ser monitorados de uma forma mais regular”, afirma Guljor.

Por isso, a decisão de nomear o psiquiatra Rafael Bernardon Ribeiro, defensor da ECT, foi recebida pela comunidade psiquiátrica com preocupação, segundo a vice-presidente da Abrasme, “mas não com surpresa pela linha que o governo vem adotando a partir dessa nova gestão”.

Ela aponta que a nomeação de alguém com estrita ligação com políticas conservadoras “traz muita apreensão”.

“Apesar de, nos últimos anos, tanto no âmbito das políticas de saúde, quanto de assistência social, temos a percepção de que era esperado alguém que estivesse nesse lugar da defesa dessas políticas antirreforma psiquiátrica.”

Para Guljor, defender como pauta prioritária a implementação da eletroconvulsoterapia pode ser uma “irresponsabilidade”, levando em consideração a baixa capacidade de fiscalização acerca do procedimento.

Em suas palavras, a prioridade deve se dar em cima da ampliação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), por exemplo, que teve uma baixa nos investimentos nos últimos anos.

Uma das últimas medidas do governo de Michel Temer, em novembro de 2018, foi o corte do repasse de R$ 77,8 milhões destinados aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs). “Qual é a rede de atenção psicossocial que tem hoje no Brasil?”, questiona.

“Ao invés de pensar em potencializar os espaços hospitalares, priorizar a rede de atenção, que é democraticamente discutida, uma política nacional desde a década de 1990, construída progressivamente junto com todos esses diversos saberes que envolvem atenção em saúde mental”, conclui Guljor.

Rafael Bernardon Ribeiro já foi, inclusive, consultor do Ministério da Saúde no governo Temer, entre novembro de 2018 e dezembro de 2019. Também foi coordenador adjunto na Coordenação-Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas de novembro de 2017 a julho de 2018.

 

* Sul 21