Especialistas analisam decisão de Leite: ‘Se a opção é a escola, então outras coisas têm que fechar’

A decisão do governador Eduardo Leite (PSDB) em alterar o Modelo de Distanciamento Controlado e mudar todas as regiões do Rio Grande do Sul da bandeira preta para a vermelha não surpreendeu médicos e pesquisadores que acompanham a crise do coronavírus no Estado. Pelo contrário. A medida, inclusive, já era esperada devida às pressões e ao desgaste do modelo nos últimos meses, período que coincidiu com a fase mais grave da pandemia.

“O modelo foi falindo aos poucos”, avalia Ely Mattos, professor da Escola de Negócios da PUC e membro do comitê científico criado pelo governo estadual durante a crise sanitária. O economista explica que o modelo de bandeiras foi desenvolvido para monitorar o sistema hospitalar e, durante um tempo, funcionou bem no acompanhamento da lotação dos leitos clínicos e de UTI. O problema, diz ele, é que o modelo foi se tornando protagonista demais com o tempo e, junto com o protagonismo, vieram o desgaste e as pressões de prefeitos e entidades da sociedade civil.

Acima de tudo, Mattos afirma que outras ações deveriam ter sido efetivadas para controlar a circulação do vírus no RS, como campanhas de comunicação, oferta de máscaras apropriadas, testagem em massa, rastreamento dos casos positivos e atenção aos indicadores de transmissão do contágio. Ao invés disso, o governo estadual olhou quase exclusivamente para a ocupação dos hospitais.

“São informações cruciais para monitorar a pandemia. A taxa de positividade é um dos dados mais importantes, é uma informação fundamental”, explica o economista. A taxa indica a relação de casos positivos dentre o total de testes realizados. Se os casos positivos aumentam numa mesma quantidade de testes, a taxa aponta a expansão do contágio na população.

A decisão do governador ocorre em função da vontade de retomar as aulas presenciais. Desde fevereiro, Leite sofreu uma série de derrotas na Justiça, impedido de reabrir as escolas durante a vigência da bandeira preta. O embate jurídico resultou em grande confusão nos últimos dias. A solução do governo, então, foi mudar a cor da bandeira.   

“Todo mundo agora resolveu que é um absurdo ter escola fechada. É uma demanda social e política muito forte, mas só agora está na pauta. Em nenhum outro momento se discutiu abrir escola antes de bar. É um argumento torto dizer que o bar está aberto e a escola não, porque o fato de estar tudo aberto não significa que a pandemia está no controle”, afirma Mattos.

O professor reconhece que as pessoas estão cansadas e que, de certo modo, a sociedade se acostumou a viver “no caos”, mas pondera que o gestor público não pode agir igual. “Qual foi a adaptação feita nas escolas? Como a estrutura foi melhorada?”, questiona.

Trava de segurança

A mudança de todo o mapa do Rio Grande do Sul da bandeira preta para a vermelha foi feita a partir de alterações nas chamadas “salvaguardas” estadual e regional. A salvaguarda estadual colocava todo o Estado em bandeira preta quando a razão de leitos livres para cada ocupado por paciente com covid-19 estava abaixo de 0,35 – e a regional era acionada quando uma região tinha elevada quantidade de novas hospitalizações e de pacientes com coronavírus e, ao mesmo tempo, estava inserida em uma macrorregião com baixa capacidade hospitalar, determinando bandeira vermelha ou preta regionalmente.

A partir de agora, a salvaguarda regional será extinta para bandeira preta, mas fica mantida para bandeira vermelha. Já a salvaguarda estadual continuará existindo, mas será acionada apenas quando o indicador de leitos atingir o índice de 0,35 depois de um ciclo de 14 dias de piora na disponibilidade. A trava será desativada quando se observar um ciclo de pelo menos 14 dias de melhoria na ocupação dos leitos de UTI.

Crítico do modelo por não refletir o momento epidemiológico, o médico Alexandre Zavascki define a mudança da salvaguarda como uma decisão política do governador para reabrir as escolas “a qualquer custo”. Para ele, a trava de segurança passou a atrapalhar as intenções do governo.

“É um modelo totalmente falho, que não tem conexão com a realidade, não evitou o colapso hospitalar e permite esse elevado número de mortos. A trava não tem justificativa, o índice de 0,35 é artificial e acabou atrapalhando o próprio governo”, afirma Zavascki.

O infectologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) destaca que os indicadores de contaminação e mortes seguem elevados no RS, apesar da queda nas últimas semanas.

“Quando se olha somente os leitos, não estamos prevendo nada, só reduzindo danos. Vou torcer para que dê certo, mas é improvável. Isso já foi feito antes e o resultado é conhecido. Se tivesse segurado mais duas semanas, estaríamos num patamar bem melhor, mas por causa das pressões…”, lamenta Zavascki.

Contaminação nas escolas

A reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Lucia Pellanda, avalia o debate em torno da volta às aulas presencias como um tema difícil e carregado emocionalmente. Ela reconhece que a questão é essencial e diz sentir tristeza ao ver bares abertos e escolas fechadas. Porém, afirma que houve a opção de primeiro abrir bares e, nesse contexto, voltar agora com as aulas presenciais vai piorar a pandemia no estado.

“Se a opção é a escola, então outras coisas têm que fechar. A escola tem que abrir com segurança e os protocolos hoje não oferecem essa segurança”, afirma a reitora, citando a adequada ventilação das salas de aula e o uso de máscara modelo PFF2 entre os adultos.

Lucia não tem dúvida de que abrir as escolas nesse momento aumentará o número de novos casos no ambiente de ensino, por isso, insiste que outros comércios não essenciais deveriam fechar para diminuir a mobilidade nas cidades. Isso se a opção for mesmo pela priorização do ensino e o desenvolvimento das crianças. Depois de um ano de aulas presencias suspensas, a reitora da UFCSPA afirma que o retorno não deve ser feito com pressa.

Também membra do comitê científico, Lucia concorda com seus colegas de que o modelo de distanciamento controlado, sozinho, não irá controlar a pandemia no estado. Para alcançar esse objetivo é preciso interromper a transmissão do vírus com outras ações, incluindo uma comunicação mais efetiva e atenção a outros indicadores epidemiológicos.

“O raciocínio dos leitos é muito perigoso. A forma de enfrentar a pandemia é não deixar chegar no leito de hospital”, explica. A professora de epidemiologia e reitora da UFCSPA avalia que houve um grande “desrespeito” com a bandeira preta, um elemento no qual chegou a acreditar que sensibilizaria as pessoas. E mesmo a bandeira vermelha, a partir de agora, também não terá o mesmo significado que já teve em 2020.

“A esperança não é uma estratégia efetiva para lidar com a pandemia. Temos que nos preparar para ter casos de contágio na comunidade escolar. É isso que queremos?”, questiona a reitora.

 

*Sul 21