O Brasil continua a ser o país que mais mata travestis e transexuais em todo o mundo. Esse é o alerta do novo dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), publicado nesta quarta-feira, 29, em razão do Dia Nacional da Visibilidade Trans.
De acordo com o documento, 124 pessoas trans foram assassinadas em 2019. O México, que está em segundo lugar no ranking global, reportou metade do número de homicídios.
A maioria das mortes em território brasileiro foi registrada na região Nordeste, onde 45 pessoas trans foram assassinadas. No entanto, em relação a números absolutos, São Paulo foi o estado que mais matou essa população no ano passado, com 21 assassinatos. O Ceará aparece logo em seguida, com 11 casos.
Outro dado revelado pelo levantamento explicita a gravidade da violência: 80% dos assassinatos apresentaram requintes de crueldade, ou seja, a maioria das mortes ocorreram após violência excessiva. Do total, apenas 8% dos casos tiveram suspeitos identificados.
Bruna Benevides, secretária de articulação política da Antra e autora do dossiê, ressalta a importância do levantamento, que está em sua terceira edição.
“A LGBTfobia, especialmente a transfobia, é estrutural e estruturante de nossa sociedade. Por conta disso, esse trabalho vem dizer à população em geral que a população trans é extremamente vulnerabilizada e marginalizada. E que são necessárias ações focais e emergenciais para frear essa violência e garantir que possamos nos desenvolver. [Que possamos] ser inseridas na sociedade de forma plena, com respeito à nossa autonomia e à nossa identidade de gênero em sua integralidade”, afirma Benevides.
O número de assassinatos em 2019 foi menor em relação aos últimos dois anos. Em 2017, foram 179 assassinatos e, em 2018, 163. Entretanto, Bruna pondera que, apesar da queda dos números, não há diminuição efetiva da violência. Apenas de 1º a 24 de janeiro de 2020, por exemplo, houve um aumento de 180% no número de homicídios em relação ao ano anterior.
“Qual pessoa trans se sente segura no Brasil? Saímos de casa e não sabemos se iremos voltar. Se iremos ser proibidas de acessar serviços públicos ou espaços comuns, especialmente neste momento em que tem piorado a forma com que a sociedade tem reagido ao avanço de nossas conquistas, muito motivado por um discurso e agenda ‘antitrans’ e ‘antigênero’ que se instalou na esfera governamental”, denuncia, acrescentando que o Brasil passou do 55º lugar para o 68º no ranking de países seguros para a população LGBT.
Conforme dados divulgados pela organização Gênero e Número, no ano passado também foi registrado um aumento de 800% das notificações de agressões contra a população trans, chegando ao número de 11 pessoas agredidas diariamente no Brasil.
Perfil
O dossiê também apresenta as principais características das vítimas da transfobia em 2019. Segundo a Antra, entre o total de vítimas, 80% eram negras e 97,7% do gênero feminino.
A associação assinala que uma pessoa trans tem mais chance de ser assassinada entre 15 e 45 anos. Mas, a cada ano, a idade das vítimas é ainda menor. Ano passado, por exemplo, três adolescentes trans de 15 anos foram mortas. Duas delas apedrejadas até a morte e a terceira espancada e enforcada, com sinais de violência sexual.
Na avaliação da porta-voz da Antra, a compilação dos dados revela a omissão do Estado brasileiro frente a essa violência. “O país segue no topo de assassinatos contra pessoas trans e nada tem sido feito. Nada. Nem mesmo o levantamento destes dados que, até então, são feitos exclusivamente pela sociedade civil. A violência enfrentada pela população trans é específica, devido à discriminação pelo gênero e a própria condição trans, e precisa de formas específicas de combate da mesma”, aponta Bruna Benevides.
A vulnerabilidade socioeconômica e de trabalho, a qual as pessoas trans estão submetidas também são destacadas pela Antra. De acordo com o dossiê, estima-se que 90% das mulheres trans estejam na prostituição, sujeitas a diversas formas de violência. Prova disso é que mais da metade dos homicídios de 2019 aconteceram nas ruas.
Subnotificação
A Antra argumenta ainda que a falta de informações sistematizadas pelo Estado dificultam o monitoramento do índice de assassinatos e leva a a uma subnotificação dos casos. Para a produção do dossiê, por exemplo, foram utilizadas notícias veiculadas em mídias de todo o país.
“O não registro não gera dados e mascara os números reais. A subnotificação é um problema tão grave quanto a violência em si. Pois ela é uma violência institucional que não reconhece a LGBTIfobia por suas causas, e ignora também suas consequências”, critica Bruna Benevides.
Ela exemplifica que só foi possível a sistematização de dados completos sobre o feminicídio quando a Lei do Feminicídio foi aprovada, mas, no caso da violência contra LGBTs, isso não acontece.
“Apesar de termos a decisão do STF [que reconheceu a discriminação contra a população LGBTI como uma forma de racismo], ela não foi incorporada no dia a dia e nos transcursos das ações de segurança. Existe todo um lobby fundamentalista que quer derrubar a própria decisão do STF”, diz.
A autora do dossiê lamenta que, sob o governo atual, o transfeminicídio – classificado como o assassinato sistemático de travestis e mulheres transexuais – pode recrudescer.
O termo é descrito pela associação como uma “política disseminada, intencional e sistemática de eliminação da população trans, motivada pelo ódio, abjeção e nojo.”
“A fala de Bolsonaro que diz que a minoria deve se curvar à maioria se reflete em reações odiosas contras nós. É um incentivo direto à violência”, critica em referência à frase dita pelo presidente brasileiro durante as últimas eleições.
*Texto: Brasil de Fato/Lu Sudré
(Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)