Circula pelas redes sociais a informação de que o Supremo Tribunal Federal (STF) teria declarado “o fim da propriedade privada” no Brasil. Tome cuidado, essa notícia é falsa!
Um texto no WhatsApp vem acompanhado do link de uma matéria da revista Veja, que tem o sentido deturpado pela mensagem. O internauta que compartilha a mensagem acusa que esse seria o “fim da propriedade privada, do “agro” e do setor imobiliário no Brasil”. No entanto, a reportagem se refere a uma decisão do ministro do STF Luís Roberto Barroso, nesta segunda-feira, 31, que determina um modelo transitório a ser seguido na retomada de despejos, até então suspensos em razão da pandemia.
A decisão de Barroso foi tomada no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, ajuizada pelo PSOL em 15 de abril de 2021. O partido pediu, tendo em vista a gravidade da pandemia do coronavírus na época, que fossem prorrogadas restrições às reintegrações de posses e aos despejos compulsórios em todo Brasil. A legenda citou na argumentação os direitos constitucionais à moradia (artigo 6 da Constituição Federal), à vida, à saúde e à propriedade (artigo 5 da CF).
A prorrogação perdurou até o dia 31 de outubro de 2022. Entretanto, diante de um novo pedido de adiamento do prazo das reintegrações de posse, Barroso não o atendeu completamente. Mas sim, determinou um regime de transição para retomar esses despejos, chamados de desocupações coletivas. É desse assunto que se tratava a matéria da Veja.
Na explicação do desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) Manoel dos Reis Morais, a adoção desse regime de transição é “uma cautela quanto à possível afetação dos direitos fundamentais das pessoas que ainda se encontram em estado de vulnerabilidade pelos efeitos sociais e econômicos causados pelo coronavírus”.
É o que consta na fundamentação de Barroso. O ministro cita dados da Campanha Despejo Zero, que diz que as 188.621 famílias que estão na iminência das desocupações se encontram justamente na parcela mais pobre da população. Ainda são mencionados números que indicam haver mais de 153.715 crianças e 151.018 idosos(as) ameaçados(as) pelas desocupações neste momento.
Nos termos da decisão de Barroso, o regime de transição determina:
- (a) Os Tribunais deverão instalar uma comissão de conflitos de apoio aos juízes, incumbida da elaboração de estratégias para a retomada das decisões de desocupação que estavam suspensas;
- (b) As comissões de conflitos fundiários deverão realizar inspeções e audiências de mediação antes de qualquer desocupação, com a participação ativa do Ministério Público e da Defensoria Pública;
- (c) Além de decisões judiciais, quaisquer medidas administrativas que resultem em remoções também devem ser avisadas previamente, bem ainda as comunidades afetadas ouvidas, com prazo razoável para a desocupação e com medidas de resguardo aos direitos fundamentais.
Mas o STF tem o poder de acabar com a propriedade privada no Brasil?
Essa possibilidade não faz sentido no ordenamento jurídico brasileiro, segundo o desembargador Manoel dos Reis Morais. Ele explica que direitos e garantias individuais são cláusulas pétreas, que constituem um dispositivo constitucional que não pode ser alterado nem mesmo por Proposta de Emenda à Constituição (PEC). As cláusulas pétreas inseridas na Constituição do Brasil de 1988 estão dispostas em seu artigo 60, § 4º.
O desembargador lembra que o STF é o guardião da Constituição — o que significa resguardar também os direitos e garantias individuais, que incluem o direito à propriedade. “Em termos jurídicos, o STF é a instância superior ou última do Poder Judiciário brasileiro e, como tal, possui a função primordial de servir como guardião da Constituição de 1988”, diz.
Morais afirma que, em situações específicas, quando dois ou mais direitos fundamentais estão em jogo – como a vida e/ou saúde em confronto com a propriedade – um ou outro deles pode ser relativizado. “No entanto, esta relativização num determinado caso específico não pode ser confundida como extinção ou eliminação desse direito fundamental”, esclarece.
Consequentemente, o STF não pode acabar com a propriedade privada. “Em determinados casos, pode relativizar o direito à propriedade frente a outro direito fundamental de maior valor, como o direito à vida ou o direito à saúde, todos com igual dignidade constitucional de cláusulas pétreas”, finaliza.
*Informações e checagem realizada pelo Estadão