Aos 93 anos, morre professora que imortalizou a sineta como símbolo do Cpers
“Anônima, esquecida e mal paga”, é assim que a jornalista Paola Gione descreveu a professora Cecy Brittes de Benites na abertura de uma entrevista publicada pelo periódico O Jornal da Semana RS, em maio de 1987. Cecy era ali retratada como a professora responsável por transformar a sineta em um símbolo do Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (Cpers). Ela morreu na semana passada, aos 93 anos, vítima de covid-19.
A sineta, hoje, é talvez o principal símbolo do Cpers, o maior sindicato do Estado. Está gravada no emblema da entidade, bem como dá nome ao jornal distribuído aos associados. Sua origem remonta à greve de 1985. Uma mobilização dura, que se estendeu por 60 dias, a primeira grande paralisação após o fim da ditadura militar, mas ainda com um governador do PDS, partido originário da Arena, Jair Soares.
“Essa foi uma das greves mais importantes da nossa história em termos de conquistas”, diz Paulo Egon, 75 anos, que presidia o Cpers na época. Após dois meses em que o governador se recusava a aceitar as propostas de acordo no sindicato — foram cinco recusas –, os professores conseguem a garantia de que o piso salarial seria equivalente a 2,5 salários mínimos a partir de novembro de 1986, a implementação do 13º salário para a categoria, de eleição de diretores de escolas, da destinação de 35% da receita para a educação, com ao menos 10% para o plano trimestral de conservação e construção das escolas, além do fato de que os professores grevistas não seriam punidos.
“Aquele acordo é o tipo de acordo que dá para emoldurar. Nós não lutamos só por salário naquela época, lutamos pela qualidade de ensino”, diz Egon.
O que ajudou a dobrar Jair Soares? As grandes assembleias, que chegaram a reunir 30 mil professores, as passeatas que juntavam milhares e eram concluídas diante do Palácio Piratini. A grande maioria deles portando as simbólicas sinetas.
Uma lembrança das aulas
Como contou na entrevista ao Jornal da Semana, Cecy havia se mudado de Alegrete, no interior do Rio Grande do Sul, para Porto Alegre ainda menina, nos anos 50, com o sonho de cursar a Faculdade de Direito. Estudou no Instituto de Educação Oswaldo Aranha e formou-se normalista em 1955. Logo após, começou a dar aulas. Primeiro em Guaíba, do outro lado do rio homônimo, no Grupo Escolar Itororó. “Eu levantava todos os dias as quatro e meia da madrugada e ia pegar o ônibus no Viaduto, para a Vila Assunção. Lá tomávamos a barca e atravessamos o rio. Quando chegávamos do outro lado, tínhamos que caminhar mais dois quilômetros até chegar à escola”.
A ideia que tinha era juntar dinheiro como professora para cursar Direito, sonho que acabava sempre sendo adiado porque não sobrava quase nada no final do mês. “Eu ganhava uma miséria tão grande, tão grande, que às vezes passava fome”, disse.
Após casar, passou a dar aulas em um grupo escolar na rua Carajás, na Vila Assunção, que sequer tinha nome. “Era uma escolinha de nada”, contou. Dali, foi para a Escola Emílio Massot, à época localizada na Cascatinha, e não no endereço atual (rua José Honorato dos Santos). A vila em que ficava a escola era uma das mais pobres da região central de Porto Alegre.
Por ajudar as crianças que muitas vezes viam a escola como o local em que faziam a única refeição do dia, Cecy contou que se via como uma “galinha choca”. “Eu dava aulas com amor, com um amor tão grande que…Foi o que me salvou. Eu era uma galinha choca para as minhas crianças. Com o pobre dinheirinho do magistério, eu comprava revistinhas, balas, presentinhos para incentivar os meus alunos. Na escolinha da Assunção, como as provas vinham prontas da Secretaria, eu ia para a garagem com uma colega dar aulas particulares para os mais atrasados. Ah, eu era mesmo uma galinha choca”.
Quando conseguiu concluir a faculdade, Letras, transferiu-se para o Colégio Paula Soares, onde, além das aulas, também trabalhava no administrativo.
A greve de 1985 foi a primeira em que Cecy decidiu se envolver. “Nunca participei ativamente das greves até 85. Aí achei que já era tempo. Era minha última cartada. Me joguei de corpo inteiro. Fui parar no Comando [de Greve], ali na Escola Parobé. Eu não parei durante dois meses. Fui para o Rosário, fui para a Assembleia, fui para o Palácio. Pintei cartaz, toquei sineta”.
Atual integrante da direção do Cpers, Glaci Weber Medeiros, 70 anos, lembra que dava aulas na escola Dom Hermeto, em Uruguaiana, e que a greve de 85 mobilizou milhares de professores do interior do Estado. Só de sua cidade, vinham de três a quatro ônibus para participar das assembleias. “Foi uma greve grande, eu não sei se não foi a maior greve que nós fizemos. Nós conseguimos um movimento bom em todo o Estado e ele [Jair Soares] teve que negociar”, diz.
Para Glaci, as sinetas ajudaram a compor o ambiente de pressão que acabou por dobrar o governador. “Era um barulho ensurdecedor das sinetas, várias e várias tocando, era muito lindo. Nós enchíamos o Gigantinho, o Araújo Viana. O símbolo para nós é muito importante. Esse símbolo é respeitado em todo o Estado, em todo o Brasil”, diz.
Paulo Egon complementa que, na época, recebeu a informação de que as passeatas com milhares de professores badalando as sinetas havia sido tema de reportagem até de uma TV da Alemanha. “Surge uma sineta, como símbolo, e se espalha pelos rincões afora. Não tinha as comunicações de hoje. Imagina se fosse hoje, se espalharia pelo mundo”, diz, acrescentando que até hoje guarda uma coleção de sinetas que foram dadas a ele por professores no tempo em que presidia o sindicato.
Na entrevista ao Jornal da Semana, Cecy conta que a ideia de usar a sineta como símbolo surgiu durante uma reunião de mobilização de greve do Cpers em que os participantes discutiam formas de fortalecer o movimento. “Todo mundo queria qualquer coisa que nos mantivesse unidas. Havia o apito dos bancários, o grito de guerra dos operários, todo mundo falando e dando palpite. E então comecei a me lembrar de Guaíba. Lá do Grupo Escolar Itororó. Havia uma sineta grande, de bronze, que eu tocava todas as manhãs. Devo ter pensado em voz alta, porque, de repente, estava todo mundo dizendo muito bem, grande ideia, é isso aí”, contou.
O relato de Cecy é que, no dia seguinte, ela mesma foi até um comerciante conhecido à época e pediu algumas sinetas emprestadas, porque não havia dinheiro para comprar. Era uma terça-feira. Deixou um cheque como garantia de que devolveria as sinetas até quinta-feira. O comerciante teria se sensibilizado após ela mostrar o salário paupérrimo no contracheque e concordou com o trato. Quando chegou na mobilização, contudo, muitos colegas já carregavam as próprias sinetas.
“Meu Deus, eu bati tanta sineta que fiquei com bolhas nas mãos”.
Segundo consta na reportagem da época, Cecy ficou conhecida durante a greve por imagens em que aparecia diante do Palácio Piratini batendo duas sinetas, uma em cada mão, vestindo luvas brancas. Ela contou que precisou das luvas porque, no dia anterior, o primeiro em que as sinetas foram usadas, havia ficado com bolhas nas mãos de tanto balançar os instrumentos.
Paulo Egon lembra de ver uma imagem de Cecy diante do Palácio Piratini, com a sineta em mãos. “Aquela foto dela com a sineta é um monumento, é um tesouro, é um ícone, um significado, uma imagem que traduz uma história. É muito lindo, eu fico até sensibilizado lembrando disso”, diz.
Ele recorda que, por se tratar do período imediatamente posterior ao fim da ditadura militar, muitos dos colegas de categoria tinham vivenciado o exílio ou mesmo sido torturados pelas forças de repressão. “Eu tinha uma colega que, quando começava uma discussão, ela começava a coçar a palma da mão, porque tinham apagado cigarros nas mãos dela, nos mamilos”, exemplifica.
Para Egon, os participantes da greve de 1985 eram heróis e heroínas anônimos. “São pessoas que ajudaram a construir o Rio Grande”, diz. “A sineta simboliza o que as professoras, os professores, os trabalhadores e trabalhadoras em educação fazem em aula. Massacrados com salários baixos, muitas professoras com dificuldades de resolver questões de sobrevivência, estão em sala de aula e ali não tem nada que segura a atuação de um professor e de uma professora. Se tem alguém no Rio Grande que deveria ser reconhecido, são os trabalhadores e trabalhadoras em educação”, complementa.
Contudo, o piso equivalente a 2,5 vezes o mínimo nacional garantido em lei chegou a ser pago apenas nos meses de novembro de dezembro de 86. Naquele ano, Pedro Simon (MDB) havia conquistado o governo do Estado e assumiria o cargo em março de 1987. “A partir de janeiro, não foram mais pagos. Na época, se falava que o Simon teria pedido para não pagar mais porque ele assumia em março, era o governador eleito”, diz Paulo Egon.
O Cpers faria uma nova grande greve em 1987, ainda mais longa, por 96 dias, e levaria a questão dos 2,5 salários mínimos para a esfera judicial, mas seria derrotado pelo Supremo Tribunal Federal.
Na entrevista ao Jornal da Semana, Cecy lamentava que, naquele ano de 1987, o que havia sido conquistado na greve de 1985 já estava sendo perdido. “Nunca pensei que tivéssemos que fazer uma greve para defender um direito adquirido por outro greve. Imagine, querem nos pagar parceladamente, como se fôssemos um eletrodoméstico”.
Mulher de luta
Única filha de Cecy, a relações públicas e ex-professora de ensino superior Ana Beatriz Benites Manssour conta que uma das lembranças que tem da época em que a mãe era professora era de alguém que sempre foi muito politizada e que sempre lutou pela melhoria da educação pública.
“Uma coisa que sempre foi muito forte nela, acho que é uma história brasileira, nunca foi valorizada como deveria ser a classe dos professores. Ela lutava muito por isso, eu via ela tirar do bolso dela, juntar coisas em casa para levar para os alunos. Até lanche ela levava para os alunos mais pobres. Eu sei o sacrifício e a dedicação que os professores de vocação, de coração, têm pelos alunos. Ela tinha muito isso, e isso eu reconhecia que havia uma falta de valorização da dedicação”, conta a filha, em entrevista ao Sul21.
Para Ana, Cecy era um exemplo de coragem ao se envolver nas reivindicações do Cpers. “Tinha greve, ela ia atrás. Eu sempre digo que ela não tinha medo de falar as coisas. Tinha muita gente, ainda mais mulher, ainda mais na época dela, que tinha medo de ser mal vista, mal compreendida, mal representada, porque mulher que fica falando e fica brigando, afinal de contas ela foi criada para ser dona de casa e mãe, submissa ao marido e aquelas coisas assim. Ela era uma mulher muito diferente nessa época. Ela realmente dizia o que tinha que dizer. Se tivesse que chegar na porta do governador e falar alguma coisa, ela ia lá e enfiava o dedo no nariz dele”, diz.
Ela lembra que a mãe contava que, uma vez, estava na greve de 85 e os policiais da tropa de choque da Brigada pressionavam os professores para saírem da frente do Palácio. De repente, percebe que um dos policiais havia sido aluno dela. “Ele olhou para ela, arregalou os olhos, reconheceu a mãe e ela disse assim: ‘Filho, tu não vai fazer isso comigo, tu sabe o nosso trabalho, tu sabe que a gente tem direito de estar aqui’. O cara recuou, deu dois passos para trás e deixou ela ficar ali”, relembra.
Ana conta que a mãe se aposentou no início dos anos 90, mas nunca deixou de ser politizada. Fazia questão de subir a lomba da Rua General Auto, onde morava e onde está localizada a escola Paula Soares, para votar até quase seus últimos anos de vida. Gostava de ter uma vida autônoma até que, em 2019, após ser hospitalizada, a família optou por colocá-la em um residencial geriátrico.
“Em casa, ela não conseguia. Como era muito mandona, as cuidadoras não conseguiam nem dar o remédio na hora, porque ela não deixava. Então, a gente teve que mudar um pouco o esquema. Ela continuou tendo o apartamento dela, para onde ela fugia de vez em quando para fumar, porque ela continuou fumando até o início da pandemia. Ela fugia, passava o dia no apartamento, fumava 10 cigarros, e voltava para o residencial”.
A filha diz acreditar que o que mais fragilizou a mãe foi não poder receber visitas no residencial em razão dos protocolos de contenção da circulação do vírus. “Aí que eu acho que ela ficou mais tristinha. Ficou abatida de ficar trancada. A gente ia visitar, mas não podia chegar perto, ficava a dois metros de distância. Ela foi ficando triste, aí que eu acho que a imunidade caiu mais. Mesmo ela já tendo tomado a segunda dose da vacina, ela acabou pegando [covid-19] e não resistiu”.