Por Franchesco de Oliveira Y Castro, estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria, campus Frederico Westphalen
A imagem nos permite explorar o desconhecido. Por meio dela, é possível estabelecer uma conexão com a realidade e nos aproximar do que ainda não conhecemos. Ela nos comunica com o mundo. Nesse universo visual, o cinema nacional transmite uma mensagem ao público, agindo como uma forma de comunicação. Agente difusor da imagem e da identidade cultural brasileira, o cinema nacional sempre foi um espelho da alma brasileira, refletindo as diferentes histórias, dores e alegrias de um país heterogêneo. Através de suas produções, o cinema brasileiro celebra a diversidade cultural, social e geográfica do Brasil, mostrando a riqueza de um país multifacetado e repleto de singularidades.
Pode-se dizer que a identidade cultural é como uma peça de cestaria indígena, trançada por fibras naturais, cipó e bambu. Representam histórias, memórias e tradições que, juntas, formam a riqueza das várias culturas presentes no país. No Brasil essa cestaria é forte e diversificada, refletindo a multiplicidade de vozes e vivências que fazem parte do nosso cotidiano. A identidade cultural não é estática, é um processo contínuo de construção e reconstrução, onde o passado encontra o presente e lança sementes para o futuro. Cada produção cinematográfica contada representa um ato de resistência contra o esquecimento, uma reafirmação de quem somos e de onde viemos.
A construção da identidade cultural e da memória coletiva no Brasil é cheia de narrativas que vão além dos livros de histórias. Filmes como “Central do Brasil”, “O Auto da Compadecida”, “Cidade de Deus” e “Bacurau” revelam diferentes aspectos da cultura brasileira. “Central do Brasil” mostra a busca por raízes e pertencimento, enquanto “O Auto da Compadecida” reflete a resistência e criatividade do povo nordestino. “Cidade de Deus” reflete sobre a violência e desigualdade das favelas cariocas, destacando a exclusão social e a resistência dos que sobrevivem. “Bacurau” oferece uma visão da resistência e identidade comunitária, misturando tradição e modernidade. Tais obras cinematográficas contribuem para a construção da memória coletiva, que consiste em ser um conjunto de lembranças, experiências e conhecimentos que ajudam na construção de identidade cultural e social.
O acesso à cultura é um direito humano universal, de acordo com a Declaração da Assembleia Geral das Nações Unidas elaborada em 1948. O artigo 27 do documento diz que todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios. Porém, cerca de um terço da população brasileira vive em cidades sem museus, e apenas 57% têm acesso a salas de cinema em seu município, segundo o Sistema de Informações e Indicadores Culturais (SIIC) do IBGE. A pesquisa, que subsidia políticas públicas, foi divulgada em dezembro de 2023 e abrange dados de 2011 a 2022. O estudo analisa a presença de cinemas, museus, teatros e rádios locais para medir o dinamismo cultural de diferentes regiões, revelando contrastes, especialmente entre o Norte e o Sul do país. Apenas 9% dos municípios possuem salas de cinemas, com maior concentração no Sudeste, sendo ação, aventura, comédia e suspense os destaques entre os títulos mais assistidos. Porém, não necessariamente são filmes brasileiros.
A Agência Nacional do Cinema (Ancine), vinculada ao Ministério da Cultura (MinC), divulgou dados em novembro sobre a evolução e expansão do cinema no Brasil. Os números indicam a retomada do aumento de salas de cinema, alcançando o maior patamar da série histórica e confirmando a trajetória de crescimento e atualização tecnológica dos cinemas brasileiros, incluindo melhorias na acessibilidade para pessoas com deficiência visual e auditiva. Segundo o gráfico do Painel de Complexos e Salas de Exibição do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA), atualmente há 3.481 cinemas em funcionamento em todos os 26 estados e no Distrito Federal. Esse número representa o maior patamar já registrado, superando o recorde anterior de 2019, quando havia 3.478 salas em funcionamento.
Essa ascensão poderia ter sido maior, visto que a gestão da Cultura do governo Bolsonaro foi marcada por várias medidas controversas, como a extinção do Ministério da Cultura (MinC) e o desmonte da Agência Nacional do Cinema (Ancine), decisão fortemente criticada e classificada como a pior das últimas décadas, devido a acusações de censura, citações nazistas, alusão à ditadura militar, trocas frequentes de gestores e imposição de uma moral religiosa na seleção de projetos financiados. Em 2 de janeiro de 2019, uma medida provisória extinguiu o MinC, redistribuindo suas competências para outros órgãos e ministérios ou até eliminando-as. É importante destacar que um país sem incentivo ao acesso à cultura resulta em uma sociedade mais desigual, marginalizada e, por consequência, desinformada.
Mas, o que se entende por cultura? O conceito de cultura nunca foi unânime. Quando alguém se refere ao termo cultura, geralmente pensamos no conceito mais erudito, que abrange apenas as artes e manifestações culturais de prestígio, como teatro, cinema, dança etc. Porém, pode-se considerar também como cultura fatos geográficos e históricos relevantes de uma sociedade. A cultura é um conceito amplo, que abrange manifestações artísticas, sociais, comportamentais e intelectuais. Ela inclui tudo, desde tradições e valores até formas de expressão artística. No caso do cinema, atualmente, as plataformas de streaming tornaram-se cada vez mais acessíveis, permitindo que uma ampla parcela da população tenha acesso a uma diversidade de conteúdos culturais. Esse acesso facilitado a filmes, séries e documentários por meio das plataformas digitais democratiza, em parte, a cultura, oferecendo oportunidades para que mais pessoas possam consumir e apreciar produções culturais de diferentes partes do mundo. Portanto, o uso crescente de plataformas de streaming representa uma forma significativa de acesso a esse tipo de cultura, contribuindo para a formação de uma sociedade mais informada e culturalmente rica, mas não é o bastante.
Vale ressaltar que políticas públicas culturais devem ser desenvolvidas, sem uma visão unificada, para promover a diversidade cultural e a inclusão social. Desde 2023, com a chegada do governo Lula, foi reativado o Ministério da Cultura, nomeando a cantora baiana Margareth Menezes como ministra. Segundo o relatório de transição de governo, o papel que a cultura representará será indispensável e tem como foco principal sua preservação a todos. Como exemplo dessas políticas públicas, destacam-se as Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc, que visam a incentivar a cultura e apoiar o setor cultural.
Um dos principais destinatários dessas políticas, o cinema tem a capacidade de perpetuar memórias. Exemplo disso é o filme “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles e estrelado por Fernanda Torres, que destaca-se como uma das maiores bilheterias do ano. Desde sua estreia em 7 de novembro, a produção atraiu mais de 2,5 milhões de espectadores nos cinemas brasileiros. Recentemente, o longa de Salles foi indicado a duas categorias no Globo de Ouro, uma das premiações mais prestigiadas do audiovisual internacional. Além de também estar selecionado para a shortlist do Oscar 2025, que consiste em ser a pré-seleção dos filmes que poderão concorrer em diversas categorias na maior premiação do cinema mundial. Baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva, o filme se passa no Rio de Janeiro nos anos 1970 e narra a trajetória de Eunice Paiva, vivida por Torres, uma dona de casa de uma família influente que precisa se reinventar após o desaparecimento de seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, durante a ditadura militar. Na primeira parte do filme, vemos um casal apaixonado e seus cinco filhos vivendo em uma encantadora casa à beira-mar no Rio de Janeiro. Na segunda metade, o lar se esvazia com a ausência de Rubens. A interpretação de Torres ocupa esse espaço com a determinação contida, mas intensa, de uma mãe que se recusa a chorar diante dos filhos. No final, “Ainda Estou Aqui” transmite uma mensagem sincera. O silêncio que muitas vezes perdura a opressão bem como os atos que tenta esconder. Este é um filme que não oferece respostas fáceis, em vez disso, desafia o público a refletir sobre a responsabilidade de lembrar e de agir. É uma produção importante não apenas para a história cinematográfica, mas também para a história do país.
Assim, a trajetória do cinema nacional se desenha como uma cesta complexa, tecendo fios de identidade, memória e resistência. Não se trata apenas de entretenimento, mas de um reflexo das múltiplas vozes que compõem o Brasil. Cada filme é um ato de coragem, uma declaração de existência, uma prova de que, apesar dos desafios, as culturas brasileiras persistem. A identidade cultural é fundamental para a formação do indivíduo e da sociedade, pois fornece um sentido de pertencimento e continuidade histórica. Ela conecta as pessoas a suas raízes, tradições e valores, colaborando na maneira como se veem e interagem com o mundo. A luta por acesso à cultura e a valorização das produções nacionais é fundamental para garantir que nossas histórias e memórias continuem sendo contadas. Somente assim poderemos assegurar que as vozes diversas que compõem a cultura brasileira sejam ouvidas e celebradas, contribuindo para um futuro mais inclusivo e representativo, entrelaçadas tão intimamente quanto as fibras dos cestos indígenas.