Paciente que recebeu transplante de órgãos com HIV diz só foi chamada pelas autoridades da saúde depois que caso saiu na imprensa

Fantástico deste domingo (13) conversou com uma das seis vítimas que foram infectadas com o vírus HIV depois de receberem um transplante de órgão no Rio de Janeiro. O incidente foi revelado na sexta-feira (11) e é investigado pela Polícia Federal.

O Governo do Estado informou que os pacientes infectados estariam recebendo atendimento clínico e psicológico. Mas não é o que diz uma paciente entrevistada pelo Fantástico.

A mulher, que não quis se identificar, recebeu um rim. Ela relatou que recebeu a notícia no último dia 3 de outubro e foi encaminhada a um posto de saúde, onde a infecção foi confirmada. No entanto, ela afirma que não recebeu orientações sobre tratamento ou medicamentos e que sua próxima consulta estava marcada apenas para o dia 29.

Após a BandNews FM revelar os casos na última quinta-feira (11), ela passou a ser procurada pelas autoridades, e um novo atendimento foi agendado para a próxima terça-feira (15).

Repórter: Alguém tinha ligado pra senhora? A Secretaria Estadual de Saúde? Do Governo do Estado?

Paciente: Não.

Repórter: Só procuraram a senhora quando saiu a notícia da infecção por HIV, não foi?

Paciente: Foi. É essa a minha revolta. Porque eu ia ficar até dia 29 sem medicação nenhuma.

O Fantástico também falou por telefone com outro paciente, que recebeu uma córnea de um dos doadores que tinham HIV. Ele não foi infectado. A família diz que está preocupada porque recebeu um aviso sobre o que aconteceu, mas nenhum tipo de atendimento.

“A gente fica preocupado, né? De repente pega um negocio desse aí e aí complica mais. Eu vou ver como é que vai ser, o médico marcou pra terça-feira aí, entendeu?”, disse.

O que disse a transplantada

“É como se o chão se abrisse e você… Sabe? (…) Porque é a minha vida e daqui pra frente a minha vida mudou. A minha família tá revoltada, porque a gente entra lá com a maior confiança de que vai dar tudo certo”, afirmou a vítima ao Fantástico.

A falha que permitiu a infecção aconteceu dentro de uma das unidades de laboratório contratado pela Secretaria Estadual de Saúde, a Patologia Clínica Doutor Saleme (PCS-Saleme).

A clínica emitiu laudos negativos para HIV de dois doadores que tinham o vírus. Ao todo, nove órgãos doadores pelos dois — um homem e uma mulher — foram transplantados e infectaram os seis pacientes.

“Eles não estão lidando com a nossa vida só. Foi só dinheiro que eles viram, né? E foi muito, não foi pouco. Foi muito dinheiro. Não tem nenhuma justificativa. Eu quero punição”, disse a vítima.

Sobre o caso

As autoridades só descobriram a infecção por HIV quando uma pessoa que havia recebido um órgão em janeiro procurou atendimento em um hospital no dia 10 de setembro. Durante os exames, foi constatada a presença do vírus. Antes do transplante, um teste havia confirmado que essa pessoa não tinha HIV.

O hospital notificou a Secretaria Estadual de Saúde, que iniciou uma investigação. Como uma amostra de sangue do doador é mantida no Hemocentro do Rio, o teste foi refeito e deu positivo para HIV. A Secretaria localizou as pessoas que também haviam recebido órgãos desse doador e confirmou que outras duas haviam sido infectadas.

Os outros três pacientes que receberam órgãos de outro doador só foram identificados no início deste mês, quando um deles procurou atendimento e descobriu que também estava com HIV.

Laboratório fechado

A Anvisa e a Vigilância Sanitária do Estado realizaram uma vistoria e decidiram fechar a unidade do laboratório PCS Saleme, responsável pelos testes dos doadores, localizada dentro de um instituto de saúde na Zona Sul do Rio de Janeiro.

O Fantástico teve acesso exclusivo às informações e fotos da auditoria, que revelou 39 irregularidades. Entre as mais graves, destacam-se: o laboratório não possuía licença para funcionar no local, amostras de sangue estavam sem identificação, não foram apresentados registros de treinamento dos funcionários, o material biológico era armazenado em uma geladeira comum, e os aparelhos de ar-condicionado estavam mal conectados, sem condições adequadas de higiene.

O diretor-geral da Central Estadual de Transplantes informou, em um ofício interno nesta semana, que a atual gestão não foi consultada durante o processo licitatório e também não participou da elaboração do contrato. Ele destacou ainda que questionou a habilitação do laboratório, pois os documentos necessários para a avaliação não foram apresentados.

Dois sócios do laboratório PCS Saleme, Matheus Vieira e Walter Vieira, são parentes do ex-secretário estadual de Saúde, Dr. Luizinho, atualmente deputado federal pelo PP. Matheus é primo do deputado, enquanto Walter é casado com a tia dele. O contrato entre o governo e o laboratório foi assinado três meses após Dr. Luizinho deixar a Secretaria de Saúde.

Em nota, o deputado Dr. Luizinho afirmou que, durante seu período como secretário, nunca participou da escolha deste ou de qualquer outro laboratório.

A reportagem tentou com um dos sócios do laboratório, Matheus Vieira, mas ele não atendeu à porta em sua residência.

Investigação

A Polícia Civil, o Ministério Público e o Conselho Regional de Medicina estão investigando a infecção dos pacientes por HIV.

A atual Secretaria Estadual de Saúde informou que o governo do estado irá contratar outro laboratório por meio de uma contratação emergencial, sem licitação.

Claudia Mello, secretária estadual de Saúde, afirmou que todos os protocolos serão revisados para evitar novos problemas.

“É evidente que a falha ocorreu. Pra mim é uma falha inadmissível […] Gostaria inicialmente de demonstrar a minha total indignação com relação a esse assunto, com relação a todo o ocorrido. Esse caso vai ser apurado totalmente, em cada linha que sair para a gente poder ter o total rigor com a determinação da cidade que eu mesma mandei instaurar”, afirmou Claudia Mello.

A secretaria prometeu, ainda, corrigir falhas no atendimento aos pacientes infectados.

“Então, em relação a isso, a gente quer afirmar que a partir de amanhã todas as buscas serão ampliadas, as equipes farão mais buscas às pessoas, nós queremos muito ouvir essas pessoas e apoiá-las no que for preciso”, disse Mello.

O que diz o Ministério da Saúde

A ministra da Saúde solicitou à Polícia Federal que investigue o caso e determinou a realização de uma auditoria na Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro.

“O que aconteceu é gravíssimo. Eu manifesto aqui, mais do que uma indignação, não é para acontecer, mas uma vez acontecendo, tem que ser apurado. Essa auditoria é uma auditoria que vai verificar todos os processos de trabalho, testes, o que foi feito, o que tem fora da regra de como deve ser”, afirmou Nísia Trindade, ministra da Saúde.

Ele destacou, ainda, que o Brasil possui o maior sistema público de transplantes do mundo, sendo reconhecido como um dos mais seguros para esse tipo de procedimento. O país é o segundo que mais realiza transplantes, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. No ano passado, foram realizados 29 mil transplantes no Brasil

“Um caso em que há irregularidade que tem que ser apurada, ele não pode contaminar a visão de todo um sistema, que até hoje tem funcionado muito bem e que garantia de vida para tantas pessoas e que precisa ser fortalecido e que precisamos, inclusive, do apoio das famílias na doação de órgãos”, disse.

Justiça

A paciente que contraiu HIV afirmou que vai lutar para que os responsáveis pelo erro sejam punidos e para que outras pessoas possam realizar transplantes com segurança.

“Que felicidade que eu fiquei, meu Deus, quando eu recebi meu rim. Quando o médico disse pra mim: ‘Você jamais vai fazer hemodiálise’, meu Deus do céu, fui no céu. Eu quero isso para os outros, sabe? A gente tem que ter essa confiança. Essa história não pode continuar, tem que acabar aqui. Então, tem que haver muita responsabilidade no que está sendo feito, para que outras pessoas possam fazer seus transplantes e pronto”, disse ao Fantástico.

Fonte: g1 Fantástico