Imunidade de rebanho por contágio: a ideia errada que seduziu a extrema direita

Desde os registros dos primeiros casos de infecção novo coronavírus no Brasil, o entendimento equivocado de uma teoria científica tem sido a tônica dos ataques às medidas de isolamento social: o argumento de que deixar uma grande parcela da população se infectar naturalmente vai controlar a pandemia da covid-19 no Brasil.

Nos debates sobre o tema, o termo imunidade de rebanho se popularizou para nomear a ideia. Mas o que setores conservadores, inclusive no governo federal, entendem como uma forma de frear a propagação do vírus naturalmente – sem os custos de medidas de prevenção e da compra de vacinas – nunca foi aplicado como política sanitária em toda a história da saúde pública.

“É o famoso barato que sai caro. Quando esse barato implica em uma vida, torna-se impagável”, afirma o médico Marco Túlio Aguiar Mourão Ribeiro, doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Ceará e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).

Marco Túlio explica que a imunidade coletiva deve ser possibilitada por meio da vacinação em massa. De outra forma, não há evidências de sucesso.

“A gente não tem cura para a covid-19, a gente vai ter um controle. Esse controle se dá pela diminuição de exposição, imunização pela vacina e máscara. Essa é a saída”, alerta.

Origem do termo

Há um equívoco inicial já no próprio uso da expressão imunidade de rebanho. Ela foi usada pela primeira vez na ciência há cerca de 100 anos em pesquisas sobre imunização com vacinas para animais. Os estudiosos começavam a entender que a vacinação em massa tinha potencial para frear surtos virais.

Por outro lado, a possibilidade de imunização natural por contágio esbarra em variantes muito significativas. Há muitos casos em que os anticorpos desenvolvidos ao longo dos quadros de infecção têm duração curta. A gripe, por exemplo, pode infectar uma mesma pessoa diversas vezes ao longo da vida. Nenhuma delas vai deixar o organismo imune.

“Algumas pessoas defendem que, em situações específicas com infecção de impacto sobre morbidade menor, não precisa se desenvolver uma vacina. Mas só é possível para uma doença de baixo impacto”, explica Marco Túlio.

Além disso, já é de conhecimento da ciência há um tempo considerável o fato de que os vírus sofrem mutações e podem voltar a atingir pessoas que já foram infectadas anteriormente.

Há ainda o risco de contaminação de pessoas nascidas após o período em que a imunização natural teria ocorrido. Em muitas doenças e casos, a proteção não passa de mãe para filho.

O vice-presidente da SBMFC lembra, “Foi visto logo no início que não é uma estratégia adequada para a covid. Se você tem uma exposição maior, várias pessoas vão se contaminar, vão ser internadas, hospitalizadas e vão chegar à morte”.

Esses fatores ajudam a explicar por que a humanidade ainda está sujeita a doenças que são ameaça há milhares de anos, como a peste bubônica, que tem registro mais antigo no ano 541 d.C. Nessa lista estão também a raiva, o sarampo, a varíola e diversas outras.

Nenhuma delas foi controlada pela imunidade de rebanho por contágio e, sem a vacinação, todas podem voltar a sair do controle. Só há duas doenças infecciosas que foram consideradas completamente erradicadas: a varíola e a peste bovina. Nos dois casos, o controle foi feito por meio das vacinas.

O ovo da serpente

Em outubro do ano passado, os epidemiologistas Sunetra Gupta (universidade de Oxford), Martin Kulldorff (universidade Harvard), e Jay Bhattacharya (universidade de Stanford) divulgaram um documento intitulado Declaração de Great Barrington.

No texto, eles defendem que pessoas “sob um risco mínimo de morte vivam suas vidas com normalidade para alcançar a imunidade ao vírus através da infecção natural, enquanto se protege melhor àqueles que se encontram sob maior risco”.

O problema é que, conforme a vacinação avança entre os grupos prioritários e variantes tomam conta do globo, o perfil das vítimas da covid muda drasticamente. No Brasil, as mortes entre os mais jovens já são maioria, por exemplo. Mas mesmo antes da imunização e das novas cepas, a proposta foi fortemente criticada pela comunidade científica.

O diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS) Tedros Adhanom Ghebreyesu alertou:

“Nunca na história da saúde pública a imunidade coletiva foi usada como estratégia para responder a uma epidemia, muito menos a uma pandemia”. Nas palavras dele, a ideia é cientificamente e eticamente errada e deixa “o caminho livre para um vírus perigoso, do qual não entendemos tudo”.

Um grupo de 80 cientistas do mundo todo – pesquisadores em epidemiologia, virologia, modelagem matemática, saúde pública, sistemas sanitários, psicologia, psiquiatria, e política – publicou um artigo afirmando que a imunidade de rebanho é “uma falácia perigosa sem evidência científica”.

Os pesquisadores alertavam, a estratégia “daria lugar a epidemias recorrentes, como ocorreu com numerosas doenças infecciosas antes do desenvolvimento de vacinas”.

Se do ponto de vista da ciência, a ideia de imunização coletiva por meio da contaminação natural não faz sentido, socialmente e politicamente ela beira o crime premeditado.

Mesmo que houvesse alguma possibilidade de controle do coronavírus por meio da infecção em massa, esse movimento causaria um número de mortes gigantesco e teria potencial para esgotar em definitivo a capacidade de atendimento do sistema de saúde.

Nenhum desses argumentos, no entanto, pareceu suficiente para convencer o governo federal, capitaneado por Jair Bolsonaro. Segundo a plataforma Aos Fatos, a suposta eficácia da imunidade de rebanho é a segunda desinformação mais recorrente no discurso do presidente. Em abril do ano passado, ele já afirmava que o Brasil estaria imunizado quando a infecção atingisse entre 60% e 70% da população.

Marco Túlio ressalta, “O Brasil não teve medidas efetivas, a gente não teve impacto em relação à vacina, a gente não teve impacto em relação ao isolamento social. A gente continua em um patamar alto. Isso é um grande risco para o sistema do saúde. Se a gente tiver uma nova onda, seja uma marézinha, a gente tem risco de colapso.”

Na prática

Nas decisões de governo, também fica cada vez mais explícito para pesquisadores, juristas e estudiosos que houve ação deliberada para propagar o vírus. Um levantamento do Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (Cepedisa) da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP), em parceria com a ONG Conectas Direitos Humanos colocou essa percepção no papel.

Publicado no início do ano, o Boletim Direitos na Pandemia trouxe uma análise de mais de 3 mil decisões da gestão de Jair Bolsonaro sobre a pandemia. São leis, medidas provisórias, decretos e outros mecanismos que, apesar da quantidade, não atenderam às necessidades criadas pela crise e atrapalharam iniciativas de outros entes. A conclusão de que há uma ação proposital para impedir o combate ao coronavírus fica explícita em uma linha do tempo trazida pela publicação.

Em fevereiro, juristas brasileiros entraram com uma representação criminal na Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o presidente Jair Bolsonaro por crimes contra a saúde pública. O grupo aponta que o governo “aposta na disseminação do vírus como estratégia de enfrentamento à pandemia”. O artigo 267 do Código Penal Brasileiro, considera crime “causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos”.

O doutor Marco Túlio conclui: “Àqueles que ainda defendem a imunidade de rebanho precisam estudar, precisam rever seus conceitos, precisam pensar no outro. Se uma vida que seja for infectada e tiver um desfecho não favorável, essa vida é importante. Cai por terra essa questão.”

 

*Sul 21