Arroio do Meio é uma das cidades do Vale do Taquari fortemente atingidas pelas enchentes de maio no Rio Grande do Sul. Lá, ainda são visíveis as marcas deixadas pela tragédia, tanto na zona urbana quanto no meio rural. A família Berwanger vive há décadas na cidade e, hoje, tenta reerguer sua produção leiteira, que chegava a 800 litros por dia, mas, após o desastre, caiu quase pela metade.
Eles estão entre os primeiros agricultores do estado a receber kits de sementes e mudas da Missão Sementes de Solidariedade. Nesta edição do Bem Viver, programa do Brasil de Fato, mostramos essa iniciativa que reúne dezenas de entidades organizadas para apoiar a reestruturação dos cultivos de subsistência dos camponeses afetados pela tragédia.
A história dos Berwanger ilustra o drama vivido por mais de 206 mil produtores rurais no Rio Grande do Sul. A situação é ainda mais grave nas pequenas propriedades do Vale do Taquari, que mal se recuperavam de duas enchentes em 2023 quando foram surpreendidas pela maior cheia já vista, que cobriu lavouras, galpões e casas.
É o que conta Élio Berwanger, desabafando sobre a “história dolorosa” dos dias de enchente. “Ficamos sem chão. Não sabíamos o que seria do amanhã. Para começar: sem roupas secas, sem alimento, e os animais… Como seria o nosso futuro daqui para frente? Os galpões estavam todos debaixo d’água, e a água subia, chegando até o telhado da casa. Foi algo que nos envelheceu dez anos em um único dia, de tanta preocupação.”
A companheira Loreci também recorda aquele dia e explica como é viver no local depois das enchentes. “Eu gosto de estar aqui, é o nosso lugar, né? Mas já falei para o Élio que agora precisamos estar atentos. Se vier enchente, vamos embora logo. Não podemos deixar para cima da hora, isso é ruim. Quando vimos tudo desmoronando, não havia armário, não havia cozinha americana, era uma bagunça, uma coisa em cima da outra. Foi difícil olhar para aquilo.”
Odair, filho de Loreci e Élio, dá uma ideia de quanto a água subiu na propriedade. “Daqui de casa até o leito do rio são 1,5 mil metros de distância. E deve haver uma diferença de 10 a 15 metros entre onde estamos e o nível do rio, mais ou menos. Em setembro [de 2023], houve uma enchente histórica, algo que nunca tínhamos vivido, nem mesmo meus pais. Mas, agora, a de maio foi cinco metros mais alta do que a de setembro.”
Ele relembra o trabalho árduo da família, que começou já quando a água subia, na tentativa de salvar animais e insumos. Agora, continuam na reconstrução de tudo o que a força das águas sujou ou destruiu.
“Com a água, o galpão levantou o telhado antigo e, depois que a água baixou, ele desabou. Tivemos que reconstruir. Algumas folhas de brasilit ainda conseguimos aproveitar do galpão antigo. A parte de trás caiu inteira; uma parte ficou de pé, mas tivemos que refazer tudo, porque não era seguro”, conta ele.
Lama soterrou plantações
Élio revela ainda uma grande preocupação de todos os camponeses da região. Uma vasta extensão de terras na margem do rio Forqueta foi soterrada por uma camada de lama com mais de um metro de altura. Para chegar ao local, que antes era área de plantio, agora só com trator. A lama formou um solo fofo que, quando seco, parece areia. As cercas que dividiam as propriedades foram enterradas.
“E não é um caso isolado; são várias propriedades, e áreas grandes. Esta aqui era uma área que produzia muito bem. Agora, temos essa dúvida: será que vamos conseguir plantar? Será que vai dar fruto?”, questiona o produtor rural.
Para Élio, Loreci e Odair, a força para seguir em frente e reerguer o sonho da família vem da ajuda recebida, que se manifestou no momento mais crítico, durante as enchentes, e agora também na ação Sementes de Solidariedade.
“Tudo que vem soma e fortalece quem está recebendo. Saber que existem outras pessoas torcendo por nós, querendo que nos reergamos e voltemos a produzir, faz toda a diferença. Sem essa ajuda, como conseguiríamos voltar? Iríamos afundar cada vez mais. Sabemos que não estamos sozinhos, que há ações do governo e de várias pessoas e instituições que estão oferecendo alimentos, sementes e muito mais. Isso nos dá esperança de futuro”, afirma.
“Vocês não estão sozinhos”
Outras 1,3 mil famílias receberam seus kits da Missão Sementes de Solidariedade até o final de setembro. E o projeto continua percorrendo diversas cidades atingidas do Rio Grande do Sul. Em Arroio do Meio, a entrega foi feita em um ato com música ao vivo e bênção das sementes.
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Arroio do Meio, Astor Klaus, relata que a situação no meio rural do município é trágica. Muitas famílias foram atingidas, e os problemas vão muito além das perdas econômicas.
“Temos famílias com muitos problemas de saúde. Como posso dizer? Depressão, medicamentos e tratamentos. As estradas foram severamente danificadas. Além dos deslizamentos e da enchente, tivemos agricultores que perderam a produção de leite, porque o leiteiro não conseguiu chegar, ou suinocultores integrados que não receberam ração”, conta.
Segundo o líder sindical, a entrega da Missão Sementes de Solidariedade contribui não apenas materialmente. “O maior sentido dessa entrega de mudas, sementes e frutíferas está na promoção da vida.”
Frei Sérgio Görgen, diretor do Instituto Cultural Padre Josimo, diz que os kits não vão recuperar a vida dos agricultores, mas, “carregados de esperança, de garra e de força, eles vão se recuperar”. Ele conta que mais de 10 mil pessoas fizeram doações em dinheiro, viabilizando a iniciativa. O kit é composto por sementes de milho, feijão, hortaliças e pastagens, mudas de árvores frutíferas e nativas, flores, batata-doce e ramas de mandioca.
Projeto feito por muitas mãos
Mais de duas mil famílias já foram visitadas pela missão, e a expectativa é que o projeto alcance outras cinco mil em mais de 50 municípios. O projeto começou com a Pastoral da Terra, o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), a Cáritas e o Instituto Cultural Padre Josimo. Depois, outros movimentos populares, sindicatos e organizações religiosas se somaram à iniciativa.
“Hoje, são mais de 23 organizações juntas nesse processo, com o objetivo de visitar as famílias, levar um abraço e dizer: ‘Vocês não estão sozinhos; a solidariedade está viva’. Percebemos que a solidariedade era muito forte na cidade, mas praticamente inexistia no campo”, explica ele.
A assistente social e integrante da Cáritas-RS, Marilene Maia, comenta a importância do projeto. “A atuação no desastre é o ponto de partida para um acompanhamento contínuo, especialmente com a população que já vive em situação de vulnerabilidade e risco.”
Para ela, uma das principais qualidades da missão é a união de muitos parceiros ao redor da solidariedade. “Esse projeto coletivo faz toda a diferença, porque, sozinhos, não conseguimos nem compreender completamente esse processo, nem intervir de maneira mais eficaz.”
Frei Sérgio destaca ainda a necessidade de ações de mitigação e de adaptação para o enfrentamento das mudanças climáticas. “A questão climática é muito mais séria do que imaginamos. Serão necessárias ações profundas para preparar as pessoas a enfrentar esse desafio e também para reduzir, a longo prazo, o impacto das mudanças climáticas.”
Agora, depois do primeiro contato do projeto, as sementes e mudas já têm destino certo na propriedade dos Berwanger. Reunida em frente à horta de subsistência, a família confirma que vai cultivar tudo o que recebeu.
“Sim, vamos plantar tudo o que recebemos. Primeiro, vamos adubar e preparar bem a terra, depois plantaremos. Se sobrar, sabemos que outras pessoas vão querer, vão precisar, e colocaremos mudas à disposição, né? Para ajudar. Não se trata apenas de vender; primeiro, pensamos em ajudar. Sabemos o que é receber ajuda”, finaliza Élio.